11 novembro, 2009

Em um certo apagão


O suor corria caudaloso pelo seu rosto enquanto acelerava ainda mais os passos na escuridão da avenida. O apagão inesperado agora alinhava-se ao seu interior, que nos últimos dias apresentava-se em silêncio vazio. A solidão aguda em meio a muitos faz questionar. Não saber lidar com a ausência do seu caráter aberto, num turbilhão de emoções descontínuas causa profunda melancolia.

Ao chegar no local em que seu transporte pararia ao seu sinal, foi surpreendido com o descaso do condutor do veículo. Após sentir o asco da fumaça cinzenta saída do motor, passou a aguardar durante indefiníveis minutos num banco improvisado. Rostos desconhecidos compartilhavam aquele espaço breu. Escritórios, centrais de atendimento, restaurantes e equipes de limpeza eram representados por caras e corpos transpirantes, exalando uma rotina caótica.

O tempo passou assim como transportes com os mais diversos destinos. Os minutos de espera e as mãos atadas o tornavam minuto a minuto um ser ainda mais desconhecido. Não saber qual o seu limite, o limite da sua paciência, o tamanho da sua compreensão com o seu redor, a estatura da sua significância diante do mundo causa profunda melancolia.

Quando levado ao seu primeiro destino pretendido, viu nas horas que elas já avançavam para além da possibilidade de chegar ao seu segundo e último destino. A insatisfação calada num interior geralmente expansivo e regrado pela satisfação, deu lugar a um fino descontentamento, inesperado e impuro. Questionamentos explodiam aos milhares em sua mente anteriormente sã. Uma solução era o que não via, apenas escuridão.

O suor já havia secado no corpo quando à porta de um hospital entregou-se como vencido. O sono e a revolta o embriagaram em rápidos minutos. O desconforto, os tendões exaustos e o nó na garganta apenas afirmavam qual era seu papel na vida. Só.

Amanheceu e a vida voltou ao normal.

12 abril, 2009

Tempos urbanos

Foto por Thiago Beleza

Tempos modernos. Vida urbana. A individualidade tão exaltada na era vinte e um, agredida nos compartimentos metálicos, carcaças de ferro sobre trilhos ou rodas. No trem. Do fundo do trem surgiu um som insistente, repetia-se um refrão de baixo calão, chulo, de desonra. Senhoras sentadas cochichavam, incomodadas, inquietas, afetadas.

Incômodo. Como cisco fino em olho recém aberto na manhã, como farpa pontiaguda de dor onipresente na carne de um dedão. Incômodo. Como enxaqueca seca em feriado de sol. Como cólica latente em ventre sensível. Sentia-se um incômodo mútuo. União de pensamentos em favor da oxidação de baterias, pilhas ou qualquer força química que dava vida ao objeto eletrônico portátil e insuportável.

No pensamento, eu me dirigia até o último banco do vagão, arrancava da mão do indivíduo seu aparelho mimado, apertava com força o botão liga / desliga e o lançava pela janela ao outro lado dos trilhos. Ou melhor, com um sorriso ironicamente amarelo, pedia por gentileza, que o nobre cavalheiro de boné e tatuagem, diminuísse o volume de seu estimado tocador de música, ou por obséquio, descesse na parada mais próxima e comprasse um par de fones, ouvidores intra-auriculares, num bazar de esquina. Mas isso não passou de pensamento.

Conformado em minha covardia, o corpo mirrado em comparação a estrutura óssea e brutal excesso de massa muscular do ser humano responsável pela desordem sonora do ambiente de ar condicionado, esperei chegar a minha estação. Com cautela, assim que a porta se abriu, saí. Do lado de fora, caminhei. O dedo médio entre as páginas do livro, o ser no vagão tido como desgosto de um passado recente e minha individualidade plenamente restituída.

07 abril, 2009

No barbeiro

Fui ao barbeiro. Não para fazer a barba, pois os pêlos que se alastraram em meu rosto depois de crescido eram ralos, indignos de receber uma definição formal, mas para dar um trato na cabeleira encaracolada, que já chegava à nuca e em dias de calor me deixava enervado.

Antes de entrar no salão, a cabeça encheu- se de lembranças. Foi um velho de sardas escuras que aparou ali meus cabelos nos primeiros anos. Tempos passaram; troquei de casa, de rua, de bairro, mas voltei à mesma casa, a mesma rua e ao mesmo bairro. Não sabia se o velho permanecera ali por tantos anos e sem perder tempo aliei minha necessidade à curiosidade nostálgica e abri a porta de vidro deslizante.

Deparei-me com um ambiente abafado e escuro para as onze da manhã, vi à esquerda uma cadeira giratória posicionada em frente ao espelho, pendurado numa parede amarelada cheia de marcas de infiltração. Não me recordei de detalhe algum naquele espaço, senti um odor espesso impregnado enquanto procurava a imagem do velho barbeiro.

Ouvi uma tosse pigarrenta. No fundo do salão, de alpercatas pretas, calça branca e camisa de flanela, o velho lia um jornal. Fiz um ruído com a garganta e disse bom dia. O jornal foi posto de lado, a lâmpada acesa e os olhos apagados fixados em mim. “Olá, eu queria aparar o cabelo, aqui dos lados.” Sem palavras ele descruzou as pernas, levantou-se, pegou a toalha e apontou para a cadeira giratória. Sentei-me sem questionar, vi que os sulcos intermináveis de sua fronte a bochechas eram agora mais fundos do que no meu tempo de menino, assim como mais escuras e opacas as sardas de seu nariz.

Repeti algumas vezes como eu queria que meu cabelo fosse aparado. O velho não tinha interesse, nem sequer ouvia enquanto ajeitava a altura da cadeira, abria e fechava gavetas, conferia tesouras, navalhas e lâminas. Envolveu meu pescoço com a toalha e deu o último toque na cadeira. Após outra tosse crua, pegou do bolso da camisa um cigarro, da calça um isqueiro e com prazer começou a fumar às baforadas. Meu ar de espanto não o surpreendeu e para o velho não importava a opinião alheia, ali era o seu espaço, uma decadência original tomara conta de tudo nos anos recentes e caso eu quisesse ter meu cabelo aparado teria de ser à maneira dele, sem contrariá-lo

A aura sinistra do velho barbeiro se ampliou assim que pegou a tesoura. O silvo fino que ela fazia em suas mãos logo remeteu minha mente as imagens de assassinos em série, personagens egocêntricos e insanos, filme noir, num misto quase agradável de assombro e morbidez.

Com um pequeno pente afastou algumas mechas paras os lados, olhou como se em minha cabeça estivesse um ninho de pombos, tossiu outra vez com a mão cobrindo a boca, deu mais uma sorvida fervorosa no filtro e iniciou seu trabalho. Da direita para a esquerda, contornando toda a minha cabeça, o velho saiu picotando aos bocados os meus cabelos pretos. Não se contentava, parecia querer deixar peladas as áreas que rodeavam minhas orelhas. Juntei as sobrancelhas com um semblante de ira agoniada, sem poder me mexer e no instante em que me preparava para detê-lo, sua tesoura se aquietou. Em rápidos minutos passou a navalha no limite dos meus cabelos para finalizar o corte. Jogou a bituca no canto do salão e com movimentos ensaiados retirou a toalha do meu pescoço. Apalpei devagar as áreas onde agora os cabelos eram ausentes, pelo espelho ele ergueu o queixo para mim, a cara fechada, questionando minha reação ao resultado. “Está bom, bom... Quanto é mesmo?” Ele já não estava por perto, voltara a mexer nos pentes, tesouras e cabelos espalhados pelo chão, ajeitando tudo com empenho. Olhei para a placa na porta de vidro: ela marcava dez ao contrário. Peguei o dinheiro da carteira e deixei em cima da gaveta menor. Dirigi-me até a porta cheio de arrependimento, mas mesmo assim insisti em agradecê-lo. Quando olhei para trás o velho já estava no fundo do salão, lendo seu jornal e fumando compulsivamente.

25 março, 2009

Frederico

Foto por Thiago Beleza

O pequeno posto de saúde do bairro estava movimentado naquela manhã de sábado. Dona Eleonora chegou à recepção com Frederico e estava ansiosa com a nova experiência, o primeiro filho até então, só havia tomado as tranquilas gotinhas. Frederico, com a mão direita presa à mãe, estava como de costume aéreo, girando com a outra mão o pequeno Power Ranger articulado. Imitava sons de explosão e golpes mortais durante todo o tempo, o que deixava dona Eleonora levemente irritada, trazendo-o de minuto em minuto junto a seu corpo com discretos puxões tensos.

Frederico não conseguiu ver o rosto da moça que disse bom dia a sua mãe atrás do balcão, sabia que era moça, pois a voz assemelhava-se a de sua tia Ester: encorpada, delicada e entusiasmada. Antes de abrir a bolsa para pegar alguns documentos, dona Eleonora agachou-se na altura do filho, olhou fundo em seus olhos acastanhados e sentenciou: “Comporte-se!”. O sorriso de canto de boca do pequeno parecia negar o cumprimento da ordem. Enquanto os papéis eram conferidos sob uma conversa de amenidades: o tempo quente, a semana corrida, a chegada da páscoa, Frederico voltou ao pequeno mundo do herói naquela ante-sala morna. No “terceiro giro mortal que derrotava o inimigo astuto do planeta Terra”, Frederico parou em frente ao mural na parede curioso com a figura estampada. Era uma foto de uma bonita barriga, sendo enlaçada por duas mãos sem revelar a quem pertenciam: para ele parecia ser de um homem, devido aos pelos nos braços como os de seu pai, e de uma mulher, pela pulseira de um rosa bem clarinho. Ao ver diversas letras sem significado, perguntou à mãe cutucando seu braço: “Que isso?”. Dona Eleonora, pensou por alguns instantes, queria ser simples e esclarecedora na resposta, mas não encontrava a linguagem certa para isso. Uma gestante? Uma mamãe com um bebê ainda na barriga? Um casal esperando um filho?! Nenhuma dessas alternativas parecia poder sanar a dúvida do pequeno Frederico. Olhando o boneco na mão do filho, teve um estalo seguido de uma vergonha absurda, coisa de mãe inexperiente: “É uma nave espacial querido, devem estar lançando um brinquedo novo.” A moça da recepção abafou com as mãos uma risada alta, que fez dona Eleonora corar. Frederico com cara de espanto, também riu sem saber direito a razão.

Mãe e filho seguiram pelo estreito corredor até chegar numa sala movimentada. Um cheiro nauseante pairava no ambiente, uma mistura de álcool, produtos de limpeza e mofo. Mulheres de branco circulavam pelo corredor, nas paredes outros cartazes de alerta sobre doenças, tratamentos e datas especiais. Enquanto guardava o restante dos papéis na bolsa, dona Eleonora acomodou o filho em seu colo e deu a ele um cartão de papel verde com marca de carimbos. Frederico ajudou a mãe meio desatento, entretido com o desenho animado que passava na televisão do  móvel a sua frente.

Em pouco tempo Frederico já não prestava atenção nos personagens e menos ainda no seu pequeno boneco. Estava com calor, queria ir embora. A sala enchera rapidamente e ele não sabia o que pensar sobre os constantes choros e gemidos vindos de toda parte. “Vamos pra casa mamãe?” – pediu tristonho, apertando a sua cintura.

“Senhora Eleonora Vila Verde!” – a voz vinha da sala ao lado. “Vamos querido, somos nós” – falou a mãe com um olhar nervoso e um sorriso forçado. Frederico pressentiu algo estranho e começou a chorar: “Não quero mamãe, não quero ir...” Dona Eleonora falou baixinho em seus ouvidos que tinha preparado uma grande surpresa para quando voltassem para casa, mas antes era preciso conversar com o moço de branco da sala ao lado. Após enxugar as lágrimas do filho, ela o levou abraçada no colo até a saleta abafada, o coração apertado. “Fala bom dia para o moço de branco querido, entrega a folhinha pra ele, entrega...”. Frederico, com os olhos avermelhados e o nariz úmido, esticou a mão para o moço de branco sem fazer questão de atender aos pedidos da mãe. O médico, ou estudante de medicina, era um rapaz bem jovem e simpático, deu ao menino três balas coloridas e o fez rir com algumas cócegas debaixo do braço.

Depois que todos estavam mais aliviados na sala, o doutor pediu que dona Eleonora se sentasse na cama acolchoada do canto da sala e preparasse o menino para a dose. “Tudo bem” – respondeu a mãe com uma respiração cortada.

Enquanto ela se acomodava e tranquilizava seu pequeno, o doutor preenchia uma ficha e carimbava o cartão. Pegou a seringa, a agulha e a pequena ampola. Apontou contra a luz e sugou todo o liquido do vidrinho. Abaixou a seringa na altura na barriga e testou a saída da agulha, espirrando algumas gotas amareladas.

Dona Eleonora nunca suportou ver o filho chorar, fazia de tudo para vê-lo satisfeito. Entregava-lhe a sobremesa antes da refeição, comprava os brinquedos que o deixavam impressionado a cada semana, deixava-o assistir os dvds do Barney até mais tarde, permitia que ficasse sem comer os legumes do prato e até dormir sem tomar banho em alguns dias na semana. Era sempre uma batalha que ela perdia. E neste dia sentia que estava trapaceando com o filho, sairia vitoriosa da batalha inconsciente, mas para ela era uma vitória covarde, iria fazer seu filho chorar sem  dar a ele uma chance de escolha.

Frederico, de pé no colo da mãe, olhava pela janela as pombas que pousavam no beiral do lado de fora, os pequenos dedos apontavam várias delas e ele alegre, ensaiava uma contagem: “Uma, duas, quatro, três...” Enquanto o médico se aproximava, Dona Eleonora quis impedi-lo por um instante, não queria maltratar seu pequeno. Ao perceber a aflição da mãe, o doutor disse que ficasse calma, não aconteceria nada de mal ao seu filho, pelo contrário era para a saúde dele. Assim que o doutor abaixou-se, Dona Eleonora apontou para árvore alta do outro lado da rua: “Olha lá querido, outros passarinhos.” Quando disse isso, viu o rosto do filho se contorcer, uma uma face desfiguarada surgiu, uma careta horrenda de choro seguida de um grito dolorido. Ela o abraçou forte contra o peito, tentou abafar seu choro com as mãos e o balançou no colo com desespero. O médico que não devia ter filhos acariciou o pequeno Frederico um pouco triste, era seu ofício e o menino soluçava. “Quer dar um pouco de água à ele” – perguntou meio sem ação. “Acho que não precisa, ele já está se acalmando” – respondeu dona Eleonora. O menino não parava de chorar e ao voltar a sua mesa para pegar o papel do pequeno Frederico, o doutor também viu algumas lágrimas deslizarem dos olhos da mãe.

Ela agradeceu e se levantou para voltar pra casa, o coração batendo acelerado, o peito do menino encostado ao seu, quando Frederico choramingou: “Era injeção mamãe?” Dona Eleonora abraçou forte o filho e não respondeu.

11 março, 2009

Ventilador Empoeirado

Foto por Thiago Beleza

Às vezes somos como ventilador empoeirado. É, um ventilador empoeirado. Nesses dias de intenso calor parei por alguns instantes, na ânsia de encontrar significado para algumas de minhas preocupações e observei o velho ventilador de casa. Robusto, potente e antigo, nos tempos de calor ele fica estrategicamente localizado no canto da sala. Quando já não suportamos o ambiente, suas hélices giram na maior velocidade possível, produzindo um quase irritante zumbido agudo. O movimento de cento e oitenta graus é manso e incessante. Essa frequência, claramente altera a temperatura do ambiente; o ar parado, sufocante e caótico passa a se movimentar numa dança veloz pelos quatro cantos, fazendo a respiração fluir com facilidade e o suor secar no corpo. Mas, mesmo afastando a monotonia do tempo, mesmo lançando as células mortes acumuladas nas superfícies pelos ares, o velho e decente ventilador fica empoeirado. Dia após dia debaixo ou dentro dos exagerados graus do verão, no canto da sala, no alto de sua eficiência como ventilador, ele faz sempre os mesmos movimentos e permanece em si, empoeirado. Não pára, não acelera, não cai, não ventila a si próprio, não queima... Permanece ali, em cento em oitenta graus durante todo o dia.

Discutimos sobre sonhos, pensamos sobre sonhos, sonhamos sobre sonhos e corremos atrás deles. Queremos movimentar esse ar sufocante da nossa realidade e alcançar ares de alivio, então falamos, discutimos, planejamos, nos preparamos... Mas uma hora nos damos conta de que estamos estrategicamente parados no canto da sala; abençoando o cotidiano alheio com nossa competência, eficiência e omissão. Nossos ombros são as melhores escoras para o sofrimento de terceiros. Exercemos toda a nossa potência em dias de conflito, mas nossas quatro hélices permanecem encardidas, nossa base está acinzentada, tal a grossa camada de pó... Parece que estamos na contramão. Mudamos outras realidades, não a nossa. Toda decisão de mudança parece uma opção de derrota. Preferimos ser velhos e confortáveis em nossa tarefa de viver. E esses mesmos sonhos pelos quais nossos coraçoes e mente palpitam, demoram a se realizar. Parece que estamos seguindo na vida sem efeito. E não há quem nos desligue, ou nos dê um curto-circuito, ou mesmo se posicione do outro lado da sala para que possamos respirar ares de mudança.

26 fevereiro, 2009

Dia incomum

Caminhava com calma pela calçada limpa em paralelo ao trilho do trem, que seguia em extensa reta do outro lado da rodovia. Nas costas, uma mochila de tecido sintético e nos ouvidos um par de fones pretos que nunca deixavam de ecoar as melhores dos Paralamas, Titãs, Ultraje e Barão, ou seja, as melhores dos anos oitenta. Estava tranquilo, pois saíra cedo de casa e tinha pelo menos quinze minutos de folga para a chegada em seu posto de trabalho. Assobiava a cada passo dado, os pensamentos deslizando despreocupados sobre a noite anterior, o café da manhã recém ingerido e os planos para o restante do dia, ou boa parte dele. “Aonde quer que eu vá” começou a tocar. Com o indicador ele pressionou o botão com sinal de mais no pequeno aparelho e começou a cantarolar em voz alta. Os carros passavam ao seu lado a toda velocidade.

A caminhada já durava uns cinco minutos quando ele percebeu que a moça que seguia a sua frente atravessou a rua de maneira brusca, sem olhar os lados, como quem havia visto o diabo e precisasse escapar a todo custo. Quando viu aquilo a considerou louca e riu com desleixo. A displicência da moça rendeu além de um quase atropelamento, uma bela buzinada e um xingamento baixo e sujo do motorista.

Passou a chutar as pequenas pedras do chão enquanto cantarolava o refrão: “aonde quer que eu vá, levo você no olhar, aonde quer que eu vá...”. Viu uma folha de papel preto dobrada adiante, recolheu-a do chão e quando a desdobrou viu que era um flyer, de uma bela festa que aconteceria no próximo sábado. Pelo endereço, seria perto do centro da cidade, um pouco distante dali, mas com a presença de duas novas e boas bandas de rock que ele ouvira naquela semana. Dobrou o papel e o pôs com cuidado no bolso direito.

Já avistava o prédio da empresa quando reparou em uma dupla que vinha em sua direção. Eram dois pouco maiores que ele, trajavam bermudas jeans, bonés e óculos escuros quase idênticos. Diferenciavam-se pelas camisetas, um vestia uma de cor branca e outro vestia uma modelo regata com os dizeres Street 88 estampados em azul. Por impulso, quando viu as duas figuras, apertou as alças da mochila e passou a cantar em volume mais baixo. Nesse momento ele procurou a moça do outro lado da rua, ela agora atravessava de volta apertando a bolsa preta sob o braço, correndo em direção ao prédio.  Não quis abaixar os olhos ou mostrar-se intimidado, por isso continuou andando com passos sóbrios, a respiração começando a ficar mais tensa.

Os caras aceleraram um pouco os passos e tinham cara de provocação. Já se pressentia que aquele não seria um contato simples e esse pressentimento o deixava aflito. A cinco metros de distância os dois rapazes voltaram a caminhar lentamente e começaram a exibir um sorriso de superioridade que poderia significar que o dia estava bem melhor para eles. Tirou os fones do ouvido sem ter certeza do por que e assim que chegou mais perto dos dois, também diminui a velocidade da caminhada. Os dois figuras que exalavam prepotência colocaram as mãos para trás e abriram caminho para a sua passagem, um de cada lado. Ele passou, segurando uma respiração nervosa e ouvindo um risinho que como pressentia, veio seguido de algumas palavras: “Ô irmãozinho, não tem uma grana aí não?”. Estático, virando-se para eles subitamente: “Putz meu tô sem nada aqui, estou apenas com as coisas do trabalho e o bilhete do trem...” – respondeu numa voz trêmula e baixa sem conseguiu olhar no rosto de nenhum dos dois. “Tá certo irmãozinho, de boa.... E esse relógio aí tem jeito?” quando ouviu aquilo teve a sensação de que os dois o haviam pegado pela gola da camisa e socado o seu rosto com os quatro punhos, deixando-o sagrando no chão. Olhou para o braço direito, uma sensação estranha transcorreu seu peito, virou as pequenas veias para si, desencaixou o cinto do relógio o entregou na mão de um deles. “Valeu irmãozinho, valeu. Pode ir de boa, fica tranqüilo.” Respirou fundo, deu meia volta e continuou a andar.

Aquela era a pior sensação que já sentira em sua vida. Quem eram aqueles caras? Quem eram eles para levar seu relógio sem mais nem menos. Eles não faziam idéia de que aquele relógio, simples que fosse, era um presente, um dos únicos presentes dados por seu pai. Seus pensamentos agora estavam turvos, as mãos tremiam e aquela sensação só poderia se chamar revolta. Queria correr, alcançá-los e pegar seu relógio de volta, falar bem alto que ele não era irmãozinho de ninguém. Mas estava em minoria, ele era minoria e menor, e não tinha nada em sua mochila que lhe desse vantagem na briga. Milan Kundera, Borges e um Dom Casmurro não eram boas armas para o plano físico e de urgência. Teve raiva daquilo, daquela situação toda, de ter chamado a moça de louca e ser ele mesmo o idiota desatento. Chegou ao prédio da empresa rubro. A recepcionista estranhou a face sisuda e questionou se estava tudo bem. Ignorou o sentido mais profundo da pergunta falando que havia corrido para chegar até ali e precisava ir rápido ao banheiro. Deixou a mochila na mesa de vidro e entrou pelo corredor.

De frente para o largo espelho contemplou seu rosto vermelho, as têmporas saltadas. Abriu a torneira e lavou o rosto com água abundante. Sentia-se constrangido, fraco e coberto por ira. Bateu com o punho na pia de mármore. Olhou o pulso, os lábios apertados, a respiração ofegante,  disse: “irmãozinho”. Na sala da recepção o fone ligado tocava a última parte: “Lalaralá, laralá, aonde quer que eu vá”. 

17 fevereiro, 2009

A praia, o Pequeno e a Revista

Férias de janeiro. O dia estava na metade e a praia cheia. Ela vestia um maiô estampado, com cores vivas, da última coleção da mais famosa marca de biquínis do Brasil. Armou a cadeira de madeira, o guarda-sol também estampado e sentou-se com uma revista na mão. Viu passar o senhorzinho da água de coco, o moço das cangas e chapéus e o rapazinho dos picolés de “frutas mais que refrescantes minha gente!”. Uma, duas ou três folheadas na revista e sentiu-se enfadada. Recostou-se no apoio de tecido áspero da cadeira e passou a mirar a água da praia, aquela estranha linha que separa o céu infinito do azul esverdeado do mar.

Um menino brincava em sua direção a uns trinta ou quarenta metros de distância. Seus olhos sorriram para ele. Era magrinho, com pés que destoavam do corpo. Ele corria num vai e vem por um trecho da praia, carregando um pequeno balde e uma colher de plástico, salpicando água nos casais de namorados que transitavam de mãos dadas. Por alguns minutos ela ficou atenta aos movimentos do garotinho: o encher aquele balde com areia branca lamacenta e o esvaziar com as mãos fechadas e agitadas. O sol ardia na pele e ela decidiu então pegar seus óculos escuros e o protetor solar. Algumas crianças maiores brincavam ali por perto, mas o menino não fugia do foco da sua atenção.

Em certa hora, ele correu para a areia graúda e seca longe das pequenas ondas, derramou a lama sob os pés e começou a modelar alguma coisa, que de início ela não entendeu o que era. Ele sorria um sorriso empolgado e inocente enquanto corria para pegar mais areia aguada. Trazia aos pulos para a parte fofa e seca da praia e prosseguia com suas instalações. Falava sozinho, parecia cantar de vez em quando. Apontava os pequenos montes de areia molhada para os que passavam pela sua frente. Convidava com gestos empolgados outras crianças para ver seu “grande castelo”. Quando ela conseguiu ler os lábio e entender o que o menino dizia, sorriu junto com ele. Mas nenhum dos que passavam lhe dava bola. O menino não se importou com a falta de atenção dispensada a ele e começou a cavar um fosso ao redor do castelo...

Parou de observar o menino e passou a olhar o seu redor. Tentou identificar quem eram os seus responsáveis ali naquela pequena extensão da areia. Do lado esquerdo, umas oito pessoas de uma família de obesos risonhos, com narizes e bochechas vermelhas meladas de protetor e sardas por todo corpo. Do lado direito, uma dúzia de adolescentes gritalhões que jogavam uma partida de frescobol. E o restante dos que passeavam, não pareciam se preocupar com filhos, nem ao menos tinha aparência de pais ou mães.

“Será que ele está sozinho?”. Assim que formulou essa questão viu o semblante do menino mudar de tom tristemente, o que era amarelo vivo e leitoso passou a ser um cinza, opaco e sujo. Pareceu até transmissão de pensamento. Em poucos segundos ela percebeu as pequenas sobrancelhas do menino juntarem-se, trazendo mais peso a sua pequena face. O horror apoderou-se dele, seus olhos percorriam agitados ao redor e os braços tornaram-se rijos, lançando longe colher e balde. Ela percebeu que o menino repetia algumas palavras seguidamente, com um esforço que fazia as finas veias de seu pescoço saltarem. Não compreendia o que ele dizia, mas percebia nitidamente as lágrimas que brilhavam sob o sol, escorrendo em seu rosto. O menino passou a girar sobre o seu próprio eixo, olhava para o céu, as lágrimas escorrendo soltas por seu pescoço. Agora gritava mãe e pai em voz alta, estridente, agoniada. Ela começou a ficar em estado de choque com aquela cena. Todos ao redor da criança e ninguém a percebendo. Mas como podia aquilo? Pensou em levantar, correr e pega-lo no colo. Mas não era seu filho. Pensou em alertar a família de roliços que estava mais a frente na areia, mas eles ouviam animadamente um aparelho de som portátil que altas batidas do que parecia funk carioca, sem notar ninguém ao redor.
Ela começou a ficar nervosa. Tremia. O menino já chorava sem forças na areia que voava sob o vento. Ele colocava as pequenas mãos sobre a cabeça e parecia suplicar.
“Alguém vai chegar....” – ela pensava. “Não, não preciso levantar, os pais desse menino devem estar por perto, já e já eles o verão...” – tentava se convencer de que estava tomando a melhor atitude. Decidiu pegar novamente a revista que estava sobre o seu colo e ignorar o nervosismo e começou a ler no topo da página: “Moda verão, página 09. Dicas de saúde, página 12. Perfil, página 15...”. Não conseguiu continuar, levantou e queria ajudar o menino, mas depois de quatro passos apressados viu que ele já não estava na areia. Procurou-o ao redor com os olhos e ouviu seus soluços sobre os braços de um guarda-vidas que seguia para a extremidade direita da praia. O menino ainda chorava, com a cabeça encostada, as lágrimas molhando a regata vermelha do moço. Ela respirou fundo, sentiu-se aliviada. Sentiu-se envergonhada. Voltou à cadeira, pôs os óculos no rosto. “Decoração, página 18. Entrevista, página 21.”.

26 janeiro, 2009

Brinquedo Novo e o Pardal

Encaixou a tira na segunda ponta daquela armação de madeira áspera em forma de ipsilon. Ergueu na altura dos olhos e esticou o máximo que pôde com seus braços finos para certificar-se de que estava justo o bastante. Pegou um pedregulho na beirada da calçada e o posicionou dentro do retângulo de couro, no centro da tira de borracha. Apontou para o alto numa direção qualquer e disparou. A pequena pedra voou frouxa no ar e caiu do outro lado da rua. Seu novo brinquedo estava firme, agora ele tinha certeza e era isso o que mais importava.

Meio dia, o sol queimava a pino num céu sem nuvens. Uma volta no quarteirão e encontrou o terreno baldio, um espaço incomum naquele bairro apinhado de casas e morros, com um enorme paredão ao fundo, e que com o calor que fazia estava resumido à pura terra seca, poeirenta, num tom vermelho alaranjado.

Passou a treinar a pontaria e a velocidade dos tiros. Acertava o paredão com pedras arredondadas e cacos de tijolos. Fazia buracos cada vez mais no alto, com zunidos quase inaudíveis finalizados por um baque oco. Em um dos tiros, concentrou-se como se fosse um atirador de elite, cerrou o olho esquerdo, aplicou toda a força nos braços e disparou. A mão que segurava a tira de borracha estremeceu segundos antes do previsto, fazendo com que ele a soltasse e ela chicoteasse com força seu antebraço. Gritou um palavrão, largou o brinquedo sacudindo o braço com desespero.

Ficou com raiva de si mesmo. Pegou a armação do chão de terra, limpou-o com desdém na camisa velha e voltou aos disparos. Atirou três ou quatro pedras quando viu no alto do paredão de barro seco um pequeno pardal assobiando e movendo-se em pequeninos saltos de um lado para o outro. Ainda estava com raiva. Tentou ignorar o passarinho por alguns minutos, mirando outras pedras em outros cantos do terreno. Estava suando, as bochechas quentes, os cabelos e os pés vermelhos de terra. Olhou novamente o pardal e num ímpeto mirou seu pequeno corpo empenado. Novamente fechou o olho esquerdo, puxou com toda a força a tira de borracha contra o seu corpo, sentiu uma gota fina de suor quente escorrer pelo canto do seu olho e descer pelo seu pescoço. Apertou a boca e soltou o tiro com um grito de ódio. Viu o passarinho cair movimentando-se freneticamente, numa tentativa de voo. A queda era alta e quando chegou ao chão a pequena ave não expressou mais vida. Subiu uma pequena nuvem de poeira vermelha ao seu redor. O menino não conseguiu se mexer, ficou parado olhando de longe aquele pequeno bolo de penas, agora sujo. Sentiu um aperto esquisito acima do estomago. Pegou o brinquedo com as duas mãos e novamente num ímpeto, quebrou a armação de madeira em duas partes e jogou longe no fundo do terreno, não percebeu que uma farpa espetara seu dedo médio. Limpou o suor do rosto e correu agoniado para casa. Não queria mais brincar por um bom tempo.

25 janeiro, 2009

Objetos Perdidos e a Moeda de Bronze*

No portão da Escola Amarela Tiná, Juju e Biazinha esperavam Caco e Cadu que sempre esqueciam alguma coisa debaixo da carteira, dessa vez Caco esquecera seu casaco e Cadu seu guarda-chuva. 

Todos os dias eram parecidos, os cinco voltavam juntos para suas casas. Tiná era a que chegava primeiro na sua, enquanto Cadu era o que geralmente chegava por último e sozinho, exceto quando a turma levava suas economias a fim de tomar um sorvete na hora da saída. Como a cidade era pequena, tudo era bem perto. A padaria ao lado do açougue, a quitanda em frente ao posto (sempre vazio) de gasolina, a pizzaria à esquerda do salão de beleza... Cadu morava perto da sorveteria do seu Nestor que ficava a algumas quadras da escola, depois da praça.

Naquele dia todos estavam preparados para tomar o Delícia de Creme, especialidade do seu Nestor, e acompanhariam Cadu por todo o percurso até perto de sua casa. A diversão era garantida. Riam e cantavam, dando passos largos por entre as calçadas vermelhas do bairro... Mas de repente todos perceberam que Cadu não estava muito animado, chutava os pedregulhos no chão com as mãos no bolso, meio cabisbaixo, sempre dando um sorriso de canto-de-boca quando falavam seu nome. Tiná já desconfiava do que tinha acontecido com o amigo. Com certeza, e como sempre, Cadu gastara suas economias e não tinha um tostão para o sorvetão do dia. Com todo mundo imitando seus passos feito siga-o-mestre, sem ele perceber, foi com um tapão na cabeça de cabelos cacheados, que Tiná fez o garoto ficar novamente risonho. “Relaxa Carlinhos Eduardo! A gente divide as moedas com você, acho que vai dar até pra tomar dois Delícias cada um!”

Quando chegavam perto da esquina que antecedia a sorveteria, viram um senhor baixinho e careca de roupas pretas entrando pela rua à esquerda que, por incrível que pareça, nenhum deles conhecia. O que chamou a atenção de Tiná e sua turma é que do bolso da calça meio amassada caíram vários objetos, parecidos com moedas, que o homem deixou pra trás sem se importar. 

Rapidamente os cinco correram, atravessaram a rua, para avisar o homem de seus objetos esquecidos. Quando chegaram em frente ao local e olharam pra a rua em que o homem de preto entrou não viram mais ninguém. Tiná agachou, e com as mãos fazendo o formato de concha, pegou as pequenas moedas juntamente com um pedaço de papel amarelado todo dobrado e rabiscado. Quis ir atrás daquele homem pela rua esquerda, mas a turma estava ansiosa para o Delícia de Creme. Então Tiná abriu o bolso menor da mochila de lã, jogou as moedas e o papel, combinando em voz alta que no dia seguinte todos voltariam ao mesmo local para devolvê-los ao senhor desconhecido.

Seu Nestor - um velho de barriga grande e bigodes brancos - já aguardava as crianças na frente da sorveteria com a maior satisfação. Sempre com balas de mel nos bolsos do avental laranja, recepcionava cada um com um punhado, acomodando-os nas poltronas fofas e coloridas da sorveteria.

“Aquele de sempre pra gente Seu Nestor! Com bastante cobertura!” – disse Biazinha que mal conseguia apoiar os braços na mesa. “Pode deixar comigo galerinha. Hoje vai sair no capricho!”

Com a boca toda lambuzada de cobertura de morango Caco fez uma pergunta que todos estavam pensando em silêncio: “Quem era aquele homem que a gente nunca viu por aqui antes?”. “E com aquela capa roupa toda preta nesse nesse sol?! Credo!” – disse Juju, antes de passar a colher por cima da taça transbordante.

Realmente aquele senhor careca era um estranho para a turma, que no intuito de descobrir alguma coisa, perguntaram ao Seu Nestor se ele o conhecia. “Não, não crianças... Não vi nenhum senhor de preto por aqui hoje.” Aquilo realmente era muito esquisito.

Estavam terminando o saboroso sorvete, quando Caco deu um pulo da poltrona. “Caramba galera! Esqueci que tinha de comprar ovos para o bolo. Minha mãe falou para eu ir direto para casa. Hoje é aniversário do meu pai e à noite vai à família toda lá pra casa! Tchau turma!” – deixou o dinheiro na mesa e sumiu da sorveteria. Já eram duas da tarde e cada um tinha de voltar para casa. Após agradecer Seu Nestor e deixar a montanha de moedas ao lado das taças, saíram os quatro no mesmo sentido. “Amanhã depois da aula aqui neste mesmo lugar hein?! Temos que devolver essas coisas ao dono.” – falou Tiná sacudindo o bolso da mochila onde estavam guardados os objetos. Após combinarem a nova missão, cada um tomou uma direção diferente. E dessa vez a última a chegar em casa sozinha foi Tiná.

                             *          *          * 

“Bá-bá-bá-buuuuuuu” – foi esse som a primeira coisa que Tiná ouviu após abrir a porta. Pepê balançava as perninhas deitado no berço que dona Alice colocara no meio da sala, enquanto fazia a lista do supermercado sentada em frente à TV. Após mostrar a língua para o bebê que a recebia com o mesmo som de “Bá-bá-bá-buuuuuu”, Tiná sentou ao lado de dona Alice para saber o que fazia. “Oi querida! Já estava preocupada com você! A mãe do Antônio Carlos ligou aqui perguntando se ele estava com você.” – falou dona Alice sem tirar os olhos do papel que já não tinha espaço para escrever. “Ah é, mamãe! Ele acabou esquecendo que tinha que ir logo para casa. Nós fomos depois da aula ali na sorveteria e ele lembrou lá... Mas já deve estar na casa dele.” – respondeu Tiná enquanto tirava a mochila das costas e descalçava os pés. “Já disse à senhorita para me avisar quando sair depois da escola... E agora pode ir tomar seu banho, que daqui a pouco o papai vai chegar e vamos fazer compras.” “Ah mamãe! Posso ficar na casa da Juju? Vocês demoram até comprar tudo e nunca me deixam trazer os biscoitos” - pedia Tiná já esparramada em frente à TV. “Tudo bem, mas não pense que vai escapar do seu banho. Vamos, vamos rápido que eu vou ligar para a mãe da Júlia e depois te deixo na casa dela”. – disse dona Alice, fechando a tampa da caneta e levantando-se em direção ao telefone.         

                           *          *          *

Agora quem ficava no centro do banco de trás do carro era Pepê. Outro ponto a menos para Tiná, que entrava no carro com o maior bico. “Ele vai aqui de novo mamãe?!” “Sem reclamar querida, a cadeirinha só encaixa aí.” – respondia dona Alice sempre serena.

Umas das coisas que Tiná não deixava de levar para onde quer que fosse era sua mochila de lã. Dona Alice que a havia costurado quando estava grávida, e agora também estava quase terminando a de Pepê, que começara a tecer numa lã azul depois que o filho nasceu. Tiná deixou o caderno de disciplina no seu quarto e carregou a mochila até o banco de trás do carro.  Colocou-a em seu colo, e já não agüentava a curiosidade de poder olhar melhor os objetos que encontrou. Mas se manteve firme até chegar à casa de Juju.

Com um beijo estalado em seu Plínio e dona Alice e um aceno de mão para Pepê, Tiná pulou do carro e foi apressada até a porta da casa, onde dona Márcia aguardava sorridente. “Às oito nós estamos de volta hein mocinha?! Obrigada viu Márcia; até mais tarde!” – falou dona Alice em voz alta para as duas que já entravam na casa sem nem ouvir direito.

Tiná já sabia o caminho do quarto de Juju. Com a mochila nas costas subiu as escadas, e correndo chegou até a porta enfeitada com lantejoulas. “Abre aqui Juju!” – falava ansiosa. Mal a amiga abriu a porta e Tiná se jogou no tapete, abrindo o bolso da mochila. Juju já tinha esquecido dos objetos do senhor careca, e quando os viu nas mãos de Tiná seus olhos brilharam. “Ah Tiná é tudo moeda comum... Não dá nem pra comprar um picolé com elas... E ainda com essas pedras... Esse papel velho... Todo amarelado...” – falava a menina enquanto Tina manuseava com imenso cuidado. “É verdade Jú é tudo co...” – começou Tiná antes de ficar paralisada de joelhos olhando para o que tinha em suas mãos.

Tiná nunca havia visto algo parecido com o que via agora. Entre os objetos que recolheu na esquina da sorveteria do seu Nestor, uma moeda de metal opaco chamava sua atenção. Era uma moeda bonita, bem mais que os centavos que estava acostumada a depositar em seu cofrinho. Com desenhos minúsculos, que a cobriam quase que por inteiro, tinha o tamanho igual ao dos biscoitos de chocolate que ela tanto gostava. Logo que a pegou nas mãos, Tiná viu que era feita de bronze, pois o tom da cor e a textura se assemelhavam as jóias que sua avó deixara para dona Alice.

Aquele era um momento especial. O tempo parecia ter parado dentro do quarto espaçoso. Por dois minutos – tempo que Tiná levou examinando quase que acariciando a moeda – elas não conseguiram pronunciar uma palavra se quer. Os olhos brilhavam juntamente com o reflexo da moeda, que apesar do metal opaco, tinha um reflexo reluzente quando posicionado contra a luz.

Por que uma pessoa andaria por aí com uma moeda daquelas? E se não fosse apenas uma moeda comum? Quem era aquele senhor careca de preto que eles nunca haviam visto na redondeza? Muitas perguntas surgiram tanto na cabeça de Tiná quanto na cabeça de Juju, mas o silêncio cobria todos os pensamentos.

“Toc, toc, toc!” O barulho da porta interrompeu todo aquele encanto. Era dona Márcia que convidava as meninas para jantar. Num susto repentino, Tiná jogou a moeda de bronze no fundo da mochila de lã. Rapidamente as meninas levantaram-se do tapete, e como se tivessem descoberto um segredo que não pudesse ser contado a ninguém, impostaram a voz e em uníssono responderam: “Já vamos!” Aguardaram mais um segundo em silencio até ouvir os passos de dona Márcia descerem as escadas lentamente. Respiraram fundo e agachando-se novamente, juntaram à grande moeda na mochila, os outros objetos que mal puderam observar. Foi necessário apenas fechar a mochila para que a curiosidade de Tiná aumentasse quanto ao restante dos objetos, principalmente o papel dobrado, que dessa vez parecia maior e mais amarelado do que quando caiu na esquina.


* Segundo capítulo de um futuro livro infantil que pretensamente comecei (somente isso) a escrever em 2005.

21 janeiro, 2009

Escreve

Escreve para mim uma carta

Pense nos versos, repense as vírgulas e escreve.

Escreve para mim um soneto

Em papel de pão, que seja

Faça rimas a combinar com meus pensamentos rasos.

Escreve para mim um segredo

Diga no rodapé o que sente e não trocaria

Por ouro nenhum deste ou de outro mundo.

Escreve para mim uma receita

Um saboroso quitute, as medidas e porções

Que amenizarão o azedume da boca.

Escreve para mim um cartão de despedida

Ponha a data, mas seja breve, sutil e cortante

Como todo adeus tem de ser.

Escreve para mim uma recomendação

Coloque os horários, anote os dias e dite as regras

Para que finalmente eu siga alguma instrução.

Escreve para mim um pedido

Comece com aspas, se faça de ingênuo e necessitado

Que te atenderei

Escreve para mim um bilhete

Primeiro seu nome em letra maiúscula

Para que me lembre de você.

 

Não fique acanhado

Pegue papel e lápis

Se preferir com uma caneta escreva na palma da mão

Só não esqueça, antes de dormir

Escreve.


13 janeiro, 2009

Velhos Celebrantes

Entrei no trem, como de costume, um pouco atrasado. Fone no ouvido, pensamentos contidos e olhar perdido no ar. Recostei-me na barra de ferro à direita e mais pelo calor que pela visão percebi que o vagão estava cheio. O rock soava alto e com o dedo indicador imitava baquetas na perna. Um ruído agudo, a porta do trem se fechou.

Meus olhos que passeavam pelo chão opaco do vagão se depararam com um par de sandálias de dedo gastas pelo tempo, com tiras de couro bem finas, acomodando pés também visivelmente gastos pelo tempo. Os pés se mexiam freneticamente como que ardessem suas solas. Subi o olhar curioso pelo fato atípico naquele trem.

Era uma mulher franzina, o rosto com traços marcados, aparentava avançada idade, na boca uma arcada dentária de aspecto artificial, uma pele enrugada, adornada por coloridas bijuterias. Os cabelos eram brancos e ralos, cobriam com palidez todo o couro cabeludo, terminando em um minguado rabo de cavalo. Uma de suas mãos salpicadas de pintas amarronzadas segurava o apoio de ferro e a outra, na altura do pescoço, gesticulava efusivamente.

Reparei em seus lábios, cobertos por uma cor rosa, eles se entreabriam com ritmo e de forma acelerada. Tirei o fone para ouvir suas palavras e notei que ela se dirigia a um grupo de três amigos tão vividos e gastos pelo tempo quanto ela. Poemas rimados, belas cantigas, letras de sambas antigos, epopéias em cordel dividiam espaço com sonoras gargalhadas e o que pensei ser um monólogo na verdade era um diálogo.

Aquela cena me fascinou . Tudo aquilo se assemelhava a uma celebração. Mas do que? Ou para quem? Uma celebração à vida,  precária e sofrida visto as condições de seus celebrantes? Uma celebração à velhice, um orgulho absurdo num mundo que prega diariamente a perpetuação da juventude sob qualquer preço? Uma celebração à amizade diante da fragmentação agressiva das relações nestes anos dois mil? Aqueles declarações festivas, aqueles risos descompromissados, aqueles sambas cadenciados em vozes roucas e semblantes gastos pelo tempo, que chamavam atenção ora alegrando uns, ora irritando outros, celebravam o que?

Fiquei incomodado. Era para estarem lamentando, mas não, ou não. Um ruído agudo, a porta do trem se abriu.

04 janeiro, 2009

Quintal e o Menino

Largou as bolinhas de gude no chão quando ouviu o rangido do portão se abrindo. Correu pelo quintal gramado até chegar aos pés da mãe, que com suor deslizando pela face carregava sacolas abarrotadas. Pegou uma das sacolas, disfarçando a careta de peso com um sorriso forçado. A mãe soltou o restante das sacolas para poder dar descanso aos dedos. Precipitado, correu com a sacola em direção a porta de casa sem ver as bolinhas de vidro espalhadas pelo chão. O tombo foi grande. As batatas e berinjelas espalharam-se por toda parte. Sentou com cara de choro, olhou para o joelho que começava a se avermelhar com sangue aguado. A mãe quis ficar brava, mas não conseguiu, deixou-o por um instante sentado decidindo se chorava ou não, recolheu os legumes empoeirados e levou as sacolas até a mesa.

Logo esqueceu o arranhão, voltou a riscar com telha o chão de barro. Era ali que inventava seus mundos, enterrava seus botões, papéis e pedras coloridas em caixas amarradas com barbante. Comia goiaba verde do pé. Fazia a dança da chuva enquanto ela caia. Dava voltas pelo corredor que cercava a casa, contava o tempo, batia recordes, ganhava premio no pódio. Ajudava as tanajuras no carregamento das sementes até os buracos das minúsculas famílias. Gritava “terra à vista!” ou “preso em nome da lei!”, dependendo da ocasião, numa companhia solitária de seu amigo imaginário. Era com ele que tinha conversas sérias, era para ele que mostrava os mapas e rotas das aventuras vindouras. Com ele desabafava, reclamava das lições de casa e da obrigação das verduras no prato. Era a ele que dava bom dia, vamos logo, boa tarde, não enche o saco e boa noite!

Girava o carrinho de madeira em frente à janela da sala quando sentiu passar pelas suas narinas um aroma que reconhecia como ninguém. Aquilo era purê cozinhando na panela e logo que percebeu seu estomago deu um sinal.

Correu para a porta tirando a sandálias dos pés para não sujar o chão encerado. Enxugou o suor do rosto com o braço, deu um sorriso para a mãe e correu em direção ao banheiro. Aprendeu que a hora do almoço era também hora do banho, uma sequência que decorara com muita bronca. Funcionava como regra: banho, almoço, troca de roupa e escola. Antigamente realizava a sequência de outra maneira: almoço, banho e escola, mas começou a passar mal de indigestão durante o banho. Quando começou a lambuzar as roupas com a nova sequência, sua mãe teve de separar o banho da troca de roupa.

Quando a mãe percebeu a empolgação dele decidiu esperar para ver o milagre. Cinco minutos depois ele já estava sentado sob a mesa, cabelos penteados para o lado, guardanapo no pescoço, mochila no braço da cadeira e os olhos saltados sobre a panela. A mãe fez o seu prato, sorriu vagarosamente um sorriso de satisfação e incredulidade. Esse menino estava mesmo no mundo da lua, mal sabia ele que não era dia de escola. No sábado o banho podia ficar pra mais tarde.