26 fevereiro, 2009

Dia incomum

Caminhava com calma pela calçada limpa em paralelo ao trilho do trem, que seguia em extensa reta do outro lado da rodovia. Nas costas, uma mochila de tecido sintético e nos ouvidos um par de fones pretos que nunca deixavam de ecoar as melhores dos Paralamas, Titãs, Ultraje e Barão, ou seja, as melhores dos anos oitenta. Estava tranquilo, pois saíra cedo de casa e tinha pelo menos quinze minutos de folga para a chegada em seu posto de trabalho. Assobiava a cada passo dado, os pensamentos deslizando despreocupados sobre a noite anterior, o café da manhã recém ingerido e os planos para o restante do dia, ou boa parte dele. “Aonde quer que eu vá” começou a tocar. Com o indicador ele pressionou o botão com sinal de mais no pequeno aparelho e começou a cantarolar em voz alta. Os carros passavam ao seu lado a toda velocidade.

A caminhada já durava uns cinco minutos quando ele percebeu que a moça que seguia a sua frente atravessou a rua de maneira brusca, sem olhar os lados, como quem havia visto o diabo e precisasse escapar a todo custo. Quando viu aquilo a considerou louca e riu com desleixo. A displicência da moça rendeu além de um quase atropelamento, uma bela buzinada e um xingamento baixo e sujo do motorista.

Passou a chutar as pequenas pedras do chão enquanto cantarolava o refrão: “aonde quer que eu vá, levo você no olhar, aonde quer que eu vá...”. Viu uma folha de papel preto dobrada adiante, recolheu-a do chão e quando a desdobrou viu que era um flyer, de uma bela festa que aconteceria no próximo sábado. Pelo endereço, seria perto do centro da cidade, um pouco distante dali, mas com a presença de duas novas e boas bandas de rock que ele ouvira naquela semana. Dobrou o papel e o pôs com cuidado no bolso direito.

Já avistava o prédio da empresa quando reparou em uma dupla que vinha em sua direção. Eram dois pouco maiores que ele, trajavam bermudas jeans, bonés e óculos escuros quase idênticos. Diferenciavam-se pelas camisetas, um vestia uma de cor branca e outro vestia uma modelo regata com os dizeres Street 88 estampados em azul. Por impulso, quando viu as duas figuras, apertou as alças da mochila e passou a cantar em volume mais baixo. Nesse momento ele procurou a moça do outro lado da rua, ela agora atravessava de volta apertando a bolsa preta sob o braço, correndo em direção ao prédio.  Não quis abaixar os olhos ou mostrar-se intimidado, por isso continuou andando com passos sóbrios, a respiração começando a ficar mais tensa.

Os caras aceleraram um pouco os passos e tinham cara de provocação. Já se pressentia que aquele não seria um contato simples e esse pressentimento o deixava aflito. A cinco metros de distância os dois rapazes voltaram a caminhar lentamente e começaram a exibir um sorriso de superioridade que poderia significar que o dia estava bem melhor para eles. Tirou os fones do ouvido sem ter certeza do por que e assim que chegou mais perto dos dois, também diminui a velocidade da caminhada. Os dois figuras que exalavam prepotência colocaram as mãos para trás e abriram caminho para a sua passagem, um de cada lado. Ele passou, segurando uma respiração nervosa e ouvindo um risinho que como pressentia, veio seguido de algumas palavras: “Ô irmãozinho, não tem uma grana aí não?”. Estático, virando-se para eles subitamente: “Putz meu tô sem nada aqui, estou apenas com as coisas do trabalho e o bilhete do trem...” – respondeu numa voz trêmula e baixa sem conseguiu olhar no rosto de nenhum dos dois. “Tá certo irmãozinho, de boa.... E esse relógio aí tem jeito?” quando ouviu aquilo teve a sensação de que os dois o haviam pegado pela gola da camisa e socado o seu rosto com os quatro punhos, deixando-o sagrando no chão. Olhou para o braço direito, uma sensação estranha transcorreu seu peito, virou as pequenas veias para si, desencaixou o cinto do relógio o entregou na mão de um deles. “Valeu irmãozinho, valeu. Pode ir de boa, fica tranqüilo.” Respirou fundo, deu meia volta e continuou a andar.

Aquela era a pior sensação que já sentira em sua vida. Quem eram aqueles caras? Quem eram eles para levar seu relógio sem mais nem menos. Eles não faziam idéia de que aquele relógio, simples que fosse, era um presente, um dos únicos presentes dados por seu pai. Seus pensamentos agora estavam turvos, as mãos tremiam e aquela sensação só poderia se chamar revolta. Queria correr, alcançá-los e pegar seu relógio de volta, falar bem alto que ele não era irmãozinho de ninguém. Mas estava em minoria, ele era minoria e menor, e não tinha nada em sua mochila que lhe desse vantagem na briga. Milan Kundera, Borges e um Dom Casmurro não eram boas armas para o plano físico e de urgência. Teve raiva daquilo, daquela situação toda, de ter chamado a moça de louca e ser ele mesmo o idiota desatento. Chegou ao prédio da empresa rubro. A recepcionista estranhou a face sisuda e questionou se estava tudo bem. Ignorou o sentido mais profundo da pergunta falando que havia corrido para chegar até ali e precisava ir rápido ao banheiro. Deixou a mochila na mesa de vidro e entrou pelo corredor.

De frente para o largo espelho contemplou seu rosto vermelho, as têmporas saltadas. Abriu a torneira e lavou o rosto com água abundante. Sentia-se constrangido, fraco e coberto por ira. Bateu com o punho na pia de mármore. Olhou o pulso, os lábios apertados, a respiração ofegante,  disse: “irmãozinho”. Na sala da recepção o fone ligado tocava a última parte: “Lalaralá, laralá, aonde quer que eu vá”. 

17 fevereiro, 2009

A praia, o Pequeno e a Revista

Férias de janeiro. O dia estava na metade e a praia cheia. Ela vestia um maiô estampado, com cores vivas, da última coleção da mais famosa marca de biquínis do Brasil. Armou a cadeira de madeira, o guarda-sol também estampado e sentou-se com uma revista na mão. Viu passar o senhorzinho da água de coco, o moço das cangas e chapéus e o rapazinho dos picolés de “frutas mais que refrescantes minha gente!”. Uma, duas ou três folheadas na revista e sentiu-se enfadada. Recostou-se no apoio de tecido áspero da cadeira e passou a mirar a água da praia, aquela estranha linha que separa o céu infinito do azul esverdeado do mar.

Um menino brincava em sua direção a uns trinta ou quarenta metros de distância. Seus olhos sorriram para ele. Era magrinho, com pés que destoavam do corpo. Ele corria num vai e vem por um trecho da praia, carregando um pequeno balde e uma colher de plástico, salpicando água nos casais de namorados que transitavam de mãos dadas. Por alguns minutos ela ficou atenta aos movimentos do garotinho: o encher aquele balde com areia branca lamacenta e o esvaziar com as mãos fechadas e agitadas. O sol ardia na pele e ela decidiu então pegar seus óculos escuros e o protetor solar. Algumas crianças maiores brincavam ali por perto, mas o menino não fugia do foco da sua atenção.

Em certa hora, ele correu para a areia graúda e seca longe das pequenas ondas, derramou a lama sob os pés e começou a modelar alguma coisa, que de início ela não entendeu o que era. Ele sorria um sorriso empolgado e inocente enquanto corria para pegar mais areia aguada. Trazia aos pulos para a parte fofa e seca da praia e prosseguia com suas instalações. Falava sozinho, parecia cantar de vez em quando. Apontava os pequenos montes de areia molhada para os que passavam pela sua frente. Convidava com gestos empolgados outras crianças para ver seu “grande castelo”. Quando ela conseguiu ler os lábio e entender o que o menino dizia, sorriu junto com ele. Mas nenhum dos que passavam lhe dava bola. O menino não se importou com a falta de atenção dispensada a ele e começou a cavar um fosso ao redor do castelo...

Parou de observar o menino e passou a olhar o seu redor. Tentou identificar quem eram os seus responsáveis ali naquela pequena extensão da areia. Do lado esquerdo, umas oito pessoas de uma família de obesos risonhos, com narizes e bochechas vermelhas meladas de protetor e sardas por todo corpo. Do lado direito, uma dúzia de adolescentes gritalhões que jogavam uma partida de frescobol. E o restante dos que passeavam, não pareciam se preocupar com filhos, nem ao menos tinha aparência de pais ou mães.

“Será que ele está sozinho?”. Assim que formulou essa questão viu o semblante do menino mudar de tom tristemente, o que era amarelo vivo e leitoso passou a ser um cinza, opaco e sujo. Pareceu até transmissão de pensamento. Em poucos segundos ela percebeu as pequenas sobrancelhas do menino juntarem-se, trazendo mais peso a sua pequena face. O horror apoderou-se dele, seus olhos percorriam agitados ao redor e os braços tornaram-se rijos, lançando longe colher e balde. Ela percebeu que o menino repetia algumas palavras seguidamente, com um esforço que fazia as finas veias de seu pescoço saltarem. Não compreendia o que ele dizia, mas percebia nitidamente as lágrimas que brilhavam sob o sol, escorrendo em seu rosto. O menino passou a girar sobre o seu próprio eixo, olhava para o céu, as lágrimas escorrendo soltas por seu pescoço. Agora gritava mãe e pai em voz alta, estridente, agoniada. Ela começou a ficar em estado de choque com aquela cena. Todos ao redor da criança e ninguém a percebendo. Mas como podia aquilo? Pensou em levantar, correr e pega-lo no colo. Mas não era seu filho. Pensou em alertar a família de roliços que estava mais a frente na areia, mas eles ouviam animadamente um aparelho de som portátil que altas batidas do que parecia funk carioca, sem notar ninguém ao redor.
Ela começou a ficar nervosa. Tremia. O menino já chorava sem forças na areia que voava sob o vento. Ele colocava as pequenas mãos sobre a cabeça e parecia suplicar.
“Alguém vai chegar....” – ela pensava. “Não, não preciso levantar, os pais desse menino devem estar por perto, já e já eles o verão...” – tentava se convencer de que estava tomando a melhor atitude. Decidiu pegar novamente a revista que estava sobre o seu colo e ignorar o nervosismo e começou a ler no topo da página: “Moda verão, página 09. Dicas de saúde, página 12. Perfil, página 15...”. Não conseguiu continuar, levantou e queria ajudar o menino, mas depois de quatro passos apressados viu que ele já não estava na areia. Procurou-o ao redor com os olhos e ouviu seus soluços sobre os braços de um guarda-vidas que seguia para a extremidade direita da praia. O menino ainda chorava, com a cabeça encostada, as lágrimas molhando a regata vermelha do moço. Ela respirou fundo, sentiu-se aliviada. Sentiu-se envergonhada. Voltou à cadeira, pôs os óculos no rosto. “Decoração, página 18. Entrevista, página 21.”.