26 dezembro, 2008

Noite


Na porta da geladeira somente duas garrafas de água. Encheu um copo e foi para o seu casulo. Deixou a mochila sobre a cadeira e lançou-se exausto sobre a cama. Seus olhos latejavam como que quisessem saltar das órbitas. Aspirou com esforço o ar em seu entorno que inflou o pulmão tão rápido quanto o esvaziou. Aquele vazio de alívio foi a melhor sensação do seu dia, eram duas da manhã quando repousou a cabeça sobre o travesseiro.

Abriu os olhos assustado com a claridade, quando virou o pulso viu que ainda era madrugada. No teto as estrelas fluorescentes coladas há poucos meses; nas prateleiras os livros de sempre, empoeirando sob a indisposição de descobri-los, nas paredes escuras as telas compradas em qualquer feira de arte. Pressentia agora que seus olhos estavam vermelhos, tal o incômodo que sentia. O sono não vinha. Ligou a televisão na tentativa de distrair seu cansaço. Mudou de canal compulsivamente até apertar o power num ato involuntário. O silêncio. Fechou os olhos, sentiu-os quentes e doloridos.

Sentou na cama e enquanto tomava o copo d’água passou a refletir sobre a infância, seus dias de menino, os tempos corridos com bola, pipa e pião. Quando criança, ao que emergiu em sua lembrança, não tinha tristezas. Subia em árvores, corria pelas escadarias do prédio, era soldado, médico, bombeiro e ladrão, tudo ao mesmo tempo sem sentir a seriedade do tempo.

Por um momento relembrou seu aniversário, uma festa de sorrisos, recheada de cores. Na hora de entoar a cantiga apertou os olhos em frente a vela em formato de oito em cera e num sopro mirado desejou de coração palpitando que crescesse logo. Queria ser homem de negócios. Como o pai, queria trajar ternos pretos e gravatas cinzas, ter uma pasta, ter uma barba...

Um frio repentino, viu que a janela estava aberta. Naquela madrugada já no primeiro sono queria ser novamente aniversariante, ter um bolo e um pedido a ser feito.

17 dezembro, 2008

A Pequena Tiná e a Segunda série B *

Era sempre em uma das últimas cadeiras no canto esquerdo da sala 2, que se acomodava uma menina miúda, dos cabelos vermelhos, rosto rechonchudo e repleto de sardas. Com sua mochila de lã sempre jogada debaixo da carteira, era com seus lápis coloridos que adorava florir o caderno, lápis esses que por mágica não duravam uma semana no estojo.

Tiná era como todos a chamavam, e ela bem que preferia atender por esse nome que pelo verdadeiro. Rita Rosa dos Reis, também o nome de sua avó, soava muito sério para ela que com sete anos vivia rodeada de Dudas, Gugas, Léos, Jucas e outros tantos diminutivos pelos quais chamava seus amigos. Por falar em amigos, isso era o que Tiná mais tinha na segunda série B, corredor 2, no segundo andar, da Escola Amarela que ficava a duas quadras da sua casa.

Por coincidência ou não a vida de Tiná era cercada pelo número dois, tanto era que há pouco tempo também ela tinha se tornado a segunda no posto de atenção na família. Pedro Paulo dos Reis, o Pepê, já estava com três meses e mesmo sem dentes na boca, nenhum fio de cabelo na cabeça e de corpo todo molengo, já era dono por completo dos mimos de seu Plínio e dona Alice, fato que Tiná não conseguia entender o porquê, mas vamos deixar para falar disso mais tarde.

Como estava dizendo, Tiná tinha muitos amigos. Mas com certeza os que mais gostava de estar junto, tanto pelas brincadeiras quanto pelas traquinagens eram Juju, Biazinha, o Caco e Cadu. Era na companhia deles que Tiná deixava a professora Beth, uma mulher alta que só usava vestidos xadrez e uns óculos vermelhos bem esquisitos, de cabelos em pé do começo ao fim da aula.

Tiná adorava sua escola. Amava estar naquela sala apertada, cheia de cartazes nas paredes, uma imensa lousa verde contornada de letras e números de borracha. Usar aquele uniforme com listras, brincar de amarelinha no pátio em frente à cantina, ou de esconde-esconde por entre as árvores que cercavam o campo gramado, eram coisas que Tiná fazia todas as manhãs na maior animação.

*          *          *          *         

Era uma manhã ensolarada de segunda-feira. Tiná já havia feito toda a lição e ajudado a amiga terminar a dela. Biazinha tinha a maior dificuldade com Matemática, no entanto era fera em Ciências, assim recompensava Tiná dando uma mãozinha em seus deveres de casa. Já também cansada de contar piadas para Caco, que estava roxo e esparramado na carteira de tanto rir, Tiná resolveu armar mais uma brincadeira para encher a paciência de Bia Flor.

Pois é. Na sala 2, do corredor 2, no segundo andar da Escola Amarela havia duas Ana Beatriz. Ana Beatriz Barão era a mais serelepe e da turma de Tiná, já Ana Beatriz Flor fazia parte do canto cor-de-rosa da sala, com seus cabelos louros e lisos até os ombros, tinha três amigas com as quais andava quase sempre idêntica. Adorava fazer inveja a todas as outras meninas da classe com suas roupas sempre novas e as pulseiras douradas que sua mãe lhe dava de presente. Era a maior festa quando Tiná deixava Bia Flor irritada ou com os olhos arregalados. Quando Bia Flor se assustava arregalava os olhos parecendo um peixe-boi, o que fazia a classe inteira cair na risada.

Tiná havia levado na mochila um dos asquerosos de mentira da sua coleção. Como sabia que Bia Flor morria de medo de insetos - descobrira sem querer num recreio quando uma abelha pousou em cima da lancheira da menina, que jogou o sanduíche de queijo para o alto, espalhando suco por toda mesa com gritos de “Socorro!!!” – foi justamente a barata gigante que Tiná tirou e com imenso cuidado amarrou junto ao cadarço do sapato aveludado de Bia Flor. Não demorou muito para começar o show. Como Bia Flor era uma das alunas mais aplicadas – e gostava de mostrar isso a todo mundo – não hesitada em responder uma pergunta se quer que a professora Beth fizesse. Já estava acabando a manhã e para finalizar a aula, a professora perguntou quem saberia resolver a soma que estava na lousa. Mal ela terminou a indagação e já se via uma mãozinha pequena erguida ao lado da porta, na primeira fileira, com os dedos pequenos se agitando para o alto. “Eu, eu, eu!” – dizia Bia Flor acelerada já se levantando da cadeira.

Com cinco passos curtos Bia Flor chegou até o canto direito da lousa, sem saber o que a seguia no seu calcanhar. Pegou um pedaço de giz amarelo e começou a formar o primeiro número da soma, fez tanta força para escrever um sete que acabou partindo o giz ao meio. Já se podiam perceber uns risos espalhados pela classe, pois alguns já percebiam aquele objeto marrom de mais ou menos um palmo grudado em seu sapato e sabiam que só podia se tratar de mais uma das peripécias de Tiná.

Agora, depois de alguns minutos, Bia Flor só precisava finalizar somando os números cinco e seis. Utilizava os dedos, que pareciam não dar conta.  Foi ficando mais nervosa por não saber terminar aquela operação - que já havia respondido em seu caderno – e por perceber que aumentara em seu redor as risadinhas e cochichos.

Mas foi no momento em que sentiu uma cosquinha por cima da meia rosa e olhou para baixo que seu nervoso foi as alturas. “Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai mamãããããããããe!!!” – era o que se ouvia durante meia hora, com Bia Flor correndo por toda a sala, empurrando as cadeiras, subindo em cima das carteiras, com os olhos saltados do jeito que só ela sabia ficar. A segunda série B gargalhava sem parar.  A pequena sala por alguns minutos mais parecia um circo, com uns batendo palmas de um lado, outros assobiando de outro... Em meio a essa confusão repentina o que pareceu mais esquisito para professora Beth foi ver a aluna ruivinha da sala, sentada totalmente em silêncio lendo, (ou tentando ler) um livro de Ciências da oitava série. Não deu outra, a professora já sabia perfeitamente quem havia armado a brincadeira com Bia Flor. Com um único “Xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu” a sala voltou ao normal, assim como os olhos esverdeados de Bia Flor, que retornou toda envergonhada a sua cadeira e se sentou, arrancando a barata com um puxão, que de perto parecia uma folha seca.

Com o dedo indicador a professora Beth chamou Tiná à sua mesa, e num movimento brusco de sua mão pôs na frente do nariz da menina o caderno de disciplina. “Mas professo...” – “Sem mais Rita! Quero isso resolvido em minha mesa amanhã no início da aula”. O caderno de disciplina era uma série de exercícios caprichados que a professora elaborava num enorme fichário de capa dura cinza, feito para os alunos que atrapalhavam sua aula, mas que geralmente acabava sempre nas mãos de Tiná. Era graças a esse caderno que Tiná se dava bem em Matemática, resolvia tudo o que estava nele em pouco tempo.

A classe já havia voltado ao normal. Tiná guardara com muito custo o caderno de disciplina na mochila. Bia Flor, após ter recortado a barata em pedacinhos com a ajuda das amigas, também voltara ao seu estado normal, pois falava alto sobre seu conjunto de lápis de cera novo, arrumando os cabelos e olhando satisfeita para a mochila “cheia” de Tiná.

A professora Beth terminou a chamada e todos só aguardavam o “berro” da sineta que fazia o silêncio daquela escola se transformar no som de um estádio de futebol de uma hora para outra. Nem parecia que há poucos minutos aquela sala apertada tinha sido palco de uma enorme confusão. Todos calados guardando suas coisas... Na segunda série B era assim, tudo terminava bem.

“Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!!!!!!”


* Primeiro capítulo de um futuro livro infantil que pretensamente comecei (somente isso) a escrever em 2005.

11 dezembro, 2008

Ocasião


Ela chegou. Ele demorou, mas também chegou. Ele queria redimir-se, mas lhe faltavam argumentos. Ela no outro canto trocava palavras com outros. Ele a viu. Ela não o notou. Ele estava covarde. Ela estava machucada. Uma música tocava, ele respirou. Ele andou em sua direção, ela não o notou. Uma música tocava, ela pensava nele. Ele a viu de perto, sentiu seu perfume, quis tocar seus cabelos. Ela não o notou. Uma música tocava, ele tomou coragem e falou. Ela o viu, finalmente o notou. Ele teve medo, mas ela sorriu. A nuvem se dissipou. Ele fez declarações, ela o questionou. Uma música tocava, ele sentia seu coração. Ele pediu, ela novamente o aceitou. Uma música tocava. Novas promessas foram feitas. Ele pegou em sua mão, ela ternamente a apertou. Ele fitou seus olhos, feliz. Ela também os dele fitou. Uma música tocava. Uma história recomeçava.

03 dezembro, 2008

Preguiça, esta senhorita




Às vezes ela vem. Vem silenciosa ao final da tarde, exalando aroma envolvente e abafado de pôr-do-sol. Ela vem e cochicha em teu ouvido que o melhor é não arriscar, que a melhor decisão é que permaneças onde estas.

Às vezes ela vem no inicio da manha, imita o cantar doce dos pássaros que pousam na janela e te seduz numa tranqüilidade fora de hora, e escreve um bilhete em teu pensamento com letras arredondadas um recado feito conselho: “A responsabilidade é para os tolos.”

Ela vem quase sempre nos finais de semana, fazendo música ao sabor dos teus ouvidos. Dotada de perspicácia, ela traz nas ondas sonoras o timbre cortante de guitarra, apagando com delicadeza os planos que tu elaboravas na memória. Ela vem na melodia da voz soprano e num passe de mágica que não sentes, leva-te ao prazer da acomodação.

Ela vem e confessa a ti que apenas quer teu bem. Você não atenta que a verdade já fugiu dos olhos dela há muito tempo. Quando cais em si, pergunta: “Onde está a verdade que fazia morada nestes teus límpidos olhos?”. Ela, sagaz engana-te mais uma vez lançando uma interrogação que faz nó em tua razão: “O que é a verdade?” Assim torna-te novamente crédulo.

Quando pões a confiança aos cuidados dela, passas a assumir um caso de devoção sem remédio. É a partir daí que teus passeios com ela passam a durar períodos de tempo cada vez maiores. O tempo para ela não importa e de repente, sem que percebas teu tempo é só dela. Ela vem ao anoitecer, faz-lhe afagos na nuca da lógica e em pouco tempo adormece tua consciência.

Quando assumes compromissos, ela vem tratar contigo, traz-lhe presentes, passeios, televisão, faz festa ao teu redor e ata teus braços com fitas coloridas. Assim, tu preferes adiar tudo o que te chateia e ficas só em companhia dela.

Ela vem sempre quando traças projetos. As obrigações, para ela, são tarefas mesquinhas e com um belo discurso olhando em teus olhos, convence-te desta idéia. Ela faz teatro. Uma bela peça, e tu estas ali no palco, cansado, num mundo desleal em que qualquer esforço maior não faz diferença. Ela conquista-te com este texto. É nesta hora que tu adormeces, ela fecha as janelas, apaga a luz e trama com as horas do relógio, que após um acordo passam a correr aceleradamente livres.

É o que ela quer. O maior desejo da senhorita é fazer-te adormecer em sono profundo. E tu, quando dormes, fazes isto em todo canto. Em casa, em frente ao livro, no trabalho, em frente às planilhas, na declaração de amor via buquê de flores.

Quando te deixas levar pela senhorita em seu sono encantado, perdes a identidade, perdes o desejo, ficas morno, não frio porque ainda vives, mas morno porque passas a ser comum, moribundo.

Queres ser feliz? Não te apegues à senhorita.

28 novembro, 2008

Coração e Papel


Já era tarde da noite quando ele acendeu a luz do quarto, pegou um dos livros da estante e se acomodou na poltrona ao lado do abajur.

Suas vistas cansadas confundiam as letras do capitulo que, ao que pareia, falava sobre amor. Quando já não entendia o sentido do que estava escrito foi atrás dos óculos. Ao colocá-lo leu pausadamente:           

“Como se fosse possível

Não sentir um certo rancor assolando minhas entranhas.

Você tão decidida e eu distraído.

Como se fosse possível deglutir o ódio que seca a minha garganta.

Você tão dedicada e eu contido.

Você age como se fosse possível

Dissipar o sentimento cortante e estampar no rosto um sorriso oco.

Você tão interessante e eu comum.

Mas na verdade não é possível.

Você tão surpreendente e eu previsível.

Não é possível fechar os olhos e ao abri-los contemplar novamente o principio.

Você tão sonhadora e eu silêncio.

Não é possível ignorar

Com uma respiração profunda ultrapassar o limite do desequilíbrio óbvio

Desequilíbrio causado ao coração.

Você tão púrpura e eu cinza.

Você tão simples e eu geométrico.

Você tão sincera e eu ausente.

Não é possível abrir mão do evidente e forçar uma satisfação fria.

Você tão reluzente e eu sombra.”

Tentou virar a página, mas a folha soltou-se do livro, permanecendo entre seus dedos. Verificou seu verso. Reconheceu nos rascunhos manuscritos os traços inclinados de seu filho mais novo.

Aproximou a folha ao rosto e numa observação mais atenciosa percebeu que o que estava escrito não pertencia a livro algum. As iniciais T.S. no final da página confirmavam que fora seu filho quem digitara e imprimira aquelas palavras há pouco tempo, visto o bom estado e brancura do papel.

Colocou o papel novamente entre as páginas do livro, riu consigo mesmo. Seu filho, seu jovem filho, já estava confuso com as artimanhas do coração.

O livro voltou para a estante e a luz foi apagada.  

19 novembro, 2008

Novembro e o Circo

Sempre aguardei o final do mês de novembro com maior ansiedade do que qualquer outro período do ano. É a data em que o circo passa aqui pela cidade. Antes da partida dos meus pais, sempre ouvi histórias sobre os personagens que dão vida ao circo. Já faz alguns anos que pego minhas economias no fundo da gaveta e vou à bilheteria do picadeiro assim que eles iniciam a montagem da lona colorida.

Meu entusiasmo começa ali, abaixo da placa metálica, em frente ao orifício retangular de onde surge a voz informando o valor do bilhete. Essa fala já me é conhecida, sei que o valor informado será o de sete e cinqüenta, nunca alteraram, desde a primeira vez que o circo veio para estas bandas, e isso me deixa satisfeito. 

Lembro como se fosse hoje, quando comprei o bilhete pela primeira vez, estava na companhia do meu primo mais velho que me levou na garupa da bicicleta e me esperou do outro lado da rua. Entreguei a nota de dez, e recebi o troco por cima do bilhete. Guardei as moedas no bolso de trás da calça e segurei o bilhete de papel com as duas mãos até chegar perto do meu primo. Quando me viu sorrindo ele achou que eu estava feliz demais por pouco, falou para eu guardar aquele papel logo, pois já estava na hora do almoço e minha tia provavelmente estaria preocupada.

Na noite do espetáculo coloquei minha melhor camisa, passei um pano molhado por cima do sapato, borrifei no pescoço o perfume do meu tio, peguei a bicicleta do meu primo emprestada, dei um beijo em minha tia e sai. Era um final de tarde de céu alaranjado e o vento fazia dançar as folhas caídas na calçada.

Prendi a bicicleta em uma pequena grade ao lado do picadeiro. Dei uns passos contornando a grade e cheguei à entrada do Gigantis Circus. Percebi que a luz do corredor era fraca, forcei a visão para encontrar um lugar vago na segunda fileira de frente para a arena. Ao meu lado estava uma mulher gorda de gestos bem simpáticos.

Acredito que foi no momento em que me sentei na poltrona que o encantamento se concretizou. O cheiro de pipoca, os chocolates, as balas de goma, o ruído efervescente das pessoas conversando enquanto aguardavam... Os ritmos cadenciados que se espalhavam pelo ambiente, o som de percussão, sopros e tamborins, as luzes coloridas a passear pelas faces entusiastas de crianças a adultos....

“Respeitável público!”, a fala se fez presente antes mesmo do mestre de cerimônias, que adentrou o picadeiro com seu paletó xadrez impecável, exibindo no alto da cabeça a mais bela e aveludada cartola que já pude ver. Sua voz transformou, como num passe de mágica, o estardalhaço em silencio de admiração. Estava aberta a porta para um outro mundo, um mundo fantástico.

Adentraram os malabaristas com trajes amarelo e branco, lançando pinos ao alto. Parecia que possuíam mais de duas mãos, pois os pinos se multiplicavam a olhos nus, e no ar mudavam de cor, a luzes os deixavam fluorescentes, como estrelas em céu de verão. Depois do mundaréu de aplausos chegaram ao centro da arena os acrobatas: homens, mulheres e até crianças que se contorciam, corriam, giravam, saltavam, sobre cordas, bolas e redes. Faziam números que nem o mais astuto dos felinos poderia imitar.  Incrível.

O mágico chegou silencioso, não trazia cartola, nem mesmo coelho. Era um homem alto, narigudo, acompanhado de duas lindas moças. Não falava uma palavra, apenas acenava com as mãos, que estavam vestidas de uma luva branca. Fez o que ninguém acreditava, foi cortado ao meio, sumiu do chão e apareceu no alto da lâmpada de um dos corredores. Ele fez tudo tão bem feito, que deixou a platéia assustada. Só recebeu palmas quando o mestre tomou o espaço insistindo com gestos de mãos exagerados.

Os palhaços me fizeram rir, chorar, chorar de rir. Não contaram piadas, fizeram apenas mímicas. Era tudo exagerado: as cores das roupas, o tamanho delas, a pintura em seus rostos, o nariz avermelhado, os sapatos como os de marrecos... Lembrei de quando eu era pequeno, no natal meu tio se vestia de Papai Noel com a ajuda de minha tia, que insistia em não usar as cores branco e vermelho, que por fim o deixava mais parecido com um palhaço.

Depois que ninguém mais agüentava de dores na barriga de tanto gargalhar, a luz foi tomando um tom azulado, passou-se a ouvir um som de cachoeira. O silêncio novamente tomou conta dos corações. Do alto do picadeiro, surgiu envolta numa fita cor de anil, a bailarina. Ah! A bailarina. Como era bela aquela moça! Deslizava pelo cetim como se fosse uma sereia, com movimentos delicados dançava no ar encantando os olhos e os sentimentos. Pouco a pouco, novas fitas surgiam do céu do picadeiro para fazer-lhe companhia, ela como que numa valsa passeava entre elas sem tocar o chão. Já o chão era uma imensidão de azul que inundava os olhos... A música prosseguiu...

Voltei para casa como se fosse o meu primeiro dia na face da Terra. Disse para mim mesmo que não perderia um só espetáculo do circo na cidade. .

Mas este ano, já estamos no final de novembro e nem sinal de sua chegada. São muitos os boatos na cidade. Uns dizem que o circo se tornou grande demais para essa lugarzinho de fim de mundo, outros dizem que o mestre de cerimônias, que era o dono do circo acabou com tudo e comprou uma fazenda. Há ainda os que dizem que eles não passaram pela cidade porque este foi ano bissexto, ano em que todos os circos do mundo tiram férias... O que é verdade eu não sei, mas ainda aguardo ansioso a vinda do circo. E da bailarina.

17 novembro, 2008

Rumo à São Paulo

Minha vida não parecia muito interessante. Ficava o dia inteiro entre jornais e revistas, trocando notas por moedas, fazendo das balas de iogurte o troco do senhor Juarez, num ritmo morno que transcorria todos os dias da semana. Quando saía da escola, ainda pela manhã, passava em casa apenas para fazer um lanche, que na maioria das vezes se resumia em um “pão com tudo dentro”, terminava a garrafa de guaraná no caminho e quase sempre levava uma bronca do meu tio por deixar o suor gelado da garrafa molhar a jornal do dia.

Banca do Seu Nestor. Era assim que todos conheciam a pequena revistaria do meu avô, embora estivesse escrito no alto em letras gigantes o nome Banca Alto-Mar. Os conhecidos dele nunca se acostumaram com esse nome dado à banca há mais de quarenta anos, embora o título tivesse tudo a ver com o local onde morávamos e o clima que desfrutávamos naquela desinteressante cidade.

Morar no litoral sempre foi muito complicado para mim. Às vezes me sentia mal por pensar dessa forma, quando via a intensa felicidade dos turistas visitando a praia, a euforia com que corriam para o mar, a maneira despreocupada que os rapazes como eu pegavam ondas e paqueravam as meninas.

Sei lá, parecia que eu havia nascido no lugar errado. Eu queria agitação, semáforos, prédios, Mc Donald’s e tudo aquilo que via nos comerciais de TV ou conhecia através da internet. Mas tudo que eu tinha era uma rotina sem graça dentro daquela velha banca de revistas, sempre fervendo a trinta e cinco graus sob o sol. Meus pais estavam sempre ocupados em cuidar da pousada que tinham perto da praia. Por isso não moravam comigo e meu avô. A escola onde eu estudava ficava bem longe da pousada, quase na divisa com a cidade vizinha. Um dia ao voltar da aula resolvi tentar mudar o rumo da minha vidinha sem graça. Tirei o material da mochila, botei umas peças de roupa, meus quadrinhos, umas economias que tinha no fundo do armário, e o guia da cidade de SÃO PAULO.

Não sei onde estava com a cabeça naquela tarde. Passei pela banca com a mochila nas costas rumo á rodoviária da cidade. Inventei uma desculpa qualquer para o meu tio, que nem me percebeu direito, tanto era o seu entusiasmo com o que lia sobre a vitória do time local. Eu me lembro bem. Era uma terça-feira, pois a escola de natação estava inaugurando uma nova turma as terças e sextas bem naquele dia, a frente da escola estava cheia de meninas trajando maiôs e toucas de nadar. A estação ficava a umas quatro quadras dali. Acelerei o passo sem ter plano algum para onde iria. Mas não importava a falta de idéias, eu queria mudar! Não agüentava mais aquele sol escaldante 365 dias por ano, aqueles peixes todos: fritos, assados, grelhados, ensopados e até crus... Faltava só mais uma quadra quando fiquei sem fôlego. O calor começou a me incomodar, passei a andar devagar e a respirar fundo. Percebi minha visão embaçada. Parei. Abaixei a cabeça entre os joelhos e me senti um pouco melhor. Mas em poucos segundos escureceu. Cai ali mesmo, naquela calçada tosca.

Acordei com uma luz branca na direção dos meus olhos, quando abri as pálpebras vi um vaso com girassóis abertos, não consegui reconhecer o lugar. “Graças a Deus!” – era a voz da minha mãe, no meu lado esquerdo. Olhei para o lado assustado, ela deu um beijo na ponta do meu nariz e me fez prometer que eu nunca mais faria aquilo de novo.

O médico disse a ela que meus hábitos alimentares eram incoerentes com aquilo que minha faixa etária exigia, e que temperatura alta havia abaixado a minha pressão. Não entendi muito bem o que isso queria dizer, mas segundo ele, eu estava bem, ficaria de repouso até o final da tarde. Consultei o relógio, os ponteiros marcavam cinco da tarde. Percebi que a minha agitada vida em São Paulo teria de ser adiada por algum tempo, mas não muito tempo. Olhei para a minha mãe e sorri.

Processo Seletivo

Na verdade não me vinha nada à mente, o lápis passeava pela folha de papel branco, da mesma cor que meus pensamentos naquela hora.

O tempo avançava e meus conhecimentos de mundo não reagiam à pressão da ocasião. Aquela sala parecia menor e mais abafada a cada minuto, as lâmpadas fluorescentes acima da minha cabeça esquentavam meu couro cabeludo, que cozinhava meus miolos, que mesmo assim continuavam inertes.

Nunca uma simples redação havia tirado o chão dos meus pés como aquela, talvez porque a tarefa de escrever sobre qualquer tema livremente fosse muito mais complexo do que eu pensava, ou talvez porque estava diante da conquista do meu tão esperado primeiro emprego, ou ainda porque eu fosse mesmo um fraco. Comecei a rascunhar a primeira linha que após quatro palavras parecia vazia de sentido, risquei com força fazendo a tinta borrar a folha. Resolvi pedir uma nova para o orientador do processo seletivo, que me atendeu prontamente sem expressão no rosto, colocando uma folha nova em cima da minha mesa.

Como precisava daquele emprego... Mas o que estava acontecendo comigo? Eu, que tinha tantos livros na estante do quarto, uma coleção enorme de quadrinhos, todos devorados em pouquíssimo tempo... Não conseguia nem ao menos reproduzir no papel a historieta da Chapeuzinho Vermelho.

Os candidatos foram se retirando da sala, pouco a pouco iam deixando em suas mesas redações brilhantemente criativas, bem elaboradas, tratando de assuntos pertinentes de forma clara e sucinta, que agradariam a qualquer analista de Recursos Humanos, eu tinha certeza. A minha aflição se tornou mais intensa, minhas mãos estavam besuntadas de suor e eu já não enxergava mais as margens verticais da folha.

Olhei para o alto da parede e já não havia mais o que fazer. O relógio oval preso perto do teto apontava o final do tempo estipulado, foi quando notei o orientador se levantar de sua cadeira almofadada à frente da sala. Ele se aproximou rapidamente da primeira fileira e pronunciou em voz firme: “O tempo acabou.” Nesse instante, contrariando todas as minhas sensações, meu sangue esfriou nas veias. Percebi que uma música de James Brown passou a ecoar pela sala em um volume crescente, aquilo foi me assustando ainda mais.

Abri o olho direito, reconheci meu travesseiro. Vi que o aparelho de som estava ligado: “Bom dia querido ouvinte! Começa agora mais um Programa Especial da Manhã, para alegrar o começo do seu dia...”. 

Esfreguei meu olho com as costas das mãos e vi que eram sete da manhã. O meu sofrimento ainda estava por vir.

01 novembro, 2008

Culpa

Os calmantes não faziam efeito, eram oito da noite e já estava sobre a cama há duas horas. Havia uma semana que não conseguia repousar em sono tranqüilo. Apagou a luz, esperando que o cansaço a recolhesse por entre a escuridão. Minutos se passaram o sono não veio e a aflição voltou novamente a inflamá-la. Ela já não reconhecia a estranha ausência de si mesma. Acendeu a luz, levantou-se num movimento impulsivo, trocou a camisola por uma camiseta cinza e uma calça jeans; penteou os cabelos com rapidez, passou batom nos lábios, pegou a chave do carro, seu celular, colocou-os na bolsa e saiu.

Antes possuía uma personalidade marcante, era uma mulher admirável, mas depois do fatídico dia, ficou vulnerável. Passou a recriminar-se em pensamentos obsessivos, pensamentos que perduravam as vinte horas em que ficava acordada no dia.

Dirigia pelas ruas e esquinas do bairro, sem destino certo. A noite estava abafada, abriu os vidros para poder respirar melhor. Procurou um cigarro no porta-luvas e não encontrou. Sentia dor de cabeça.

A culpa passou a ser o seu inferno. Não era arrependimento, não poderia mudar de atitude, não tinha recomeço, não poderia se redimir simplesmente, já estava feito. Era culpa e aquela sensação constante adquiriu contornos macabros em sua rotina. Aquilo passou a ferver seu sangue enquanto almoçava, passou a corroer seus ossos enquanto lia o editorial do jornal, torturar a sua carne enquanto tomava banho antes de dormir, amedrontar sua alma enquanto assistia a serie de TV, levando-a em obscuros dias de desespero. A paz havia se dissipado. Ela sentia culpa e não conseguiria suportar por mais tempo.

Estacionou perto de uma esquina sem movimento, ativou o alarme, saiu do carro fechando a porta com um movimento sutil e começou a caminhar. Os passos curtos e apressados pelas calçadas do bairro foram interrompidos pelo encontro que teve duas quadras adiante. Olhou a grande escadaria iluminada pela luz esbranquiçada do poste e teve repulsa, vergonha, mas também um dever inquestionável.

Começou a subir os degraus de concreto. Sentia a face quente, mas quando esfregou as mãos, suas palmas estavam suando, um suor gelado. No oitavo degrau apoiou-se no corrimão. Guardou a chave, que ainda estava em sua mão. Percebeu que um papel estava grudado na sola do sapato; uma propaganda em letras azuis começava no topo do papel com a sentença: “Seja feliz a partir de agora”, amassou o papel e deixou-o pelo chão. Continuou.

Ao chegar ao topo contemplou admirada a estrutura da porta antiga, trabalhada em madeira escura, com detalhes cor de ouro que percorriam toda a sua extensão. Fez o sinal da cruz com a mão direita, jogou o cabelo ondulado para trás dos ombros e adentrou.

Com passos calmos, olhava o chão e ouvia atenta o eco que eles emitiam ao seu redor. Percebeu um sussurro, ao olhar ao seu lado, viu uma senhora magra, vestindo uma manta com botões vermelhos, olheiras escuras, balbuciando uma prece triste com os olhos fechados e o terço de pérolas entre os dedos. Mais a frente reparou num casal ajoelhado sobre o suporte do banco comprido, ela com seu terço de bolinhas opacas, ele com as mãos unidas em frente ao rosto, as pálpebras apertadas, numa oração contrita.

Continuou a caminhar percebendo os rostos e rituais. Uma criança, sentada dois bancos a frente do casal, chamou sua atenção. Seus pequenos olhos estavam fixos no centro do altar. As duas esferas negras brilhavam sem piscar, hipnotizadas pelo alto da parede.

Lá no alto pendia um enorme crucifixo com um homem de barba comprida, cravado por pregos nos punhos e na base dos pés, a pele surrada, ensangüentado, com veias e tendões saltados em todo o corpo e no rosto uma expressão de contida agonia. Ao ver aquela figura, também não conseguiu descansar os olhos, seu coração pareceu pulsar com mais força. Passou a caminhar com decisão para aproximar-se da figura, mas logo a culpa lhe sobreveio. Como água, a culpa esfriou todo o calor de esperança, todo o rompante de convicção.

Olhou a sua esquerda e tomou o primeiro assento. Tentou descansar as mãos em cima dos joelhos, mas num ato involuntário cruzou os dedos. Sentiu sua respiração acelerar repentinamente, seus lábios passaram a tremer, e no seu peito passou a crescer um turbilhão de lembranças e sentimentos confusos que em poucos segundos fizeram correr em seu rosto, duas linhas de lágrimas doloridas. Ela engoliu o aperto que sentia na garganta. Olhou para a parede, para a cruz, para aquele homem desfigurado e numa voz quase inaudível rogou: “Perdão”.

09 outubro, 2008

All Star Preto

Ouviu o soar da sineta. Enquanto todos corriam em direção ao pátio, ele ficou parado em frente à sala dos professores, atarefado consigo mesmo.

Agachado, a franja escura balançando sobre a testa, ele apoiava o joelho direito no peito para facilitar a execução da tarefa. Os dedos tremiam por entre as pontas do cordão. Tentava nervoso relembrar as regras e etapas aprendidas há poucas semanas. Ela passou ao seu lado, abrindo sua lancheira, no intuito de pegar a maçã verde, sem querer notou que ele estava agachado, como era curiosa, parou ao seu lado.

- Precisa de ajuda?

- Não, eu sei fazer sozinho.

- Não sabe nada, você está aí faz um tempão.      

-É que estou me concentrando, só isso. Você não estava indo comer sua maçã?

- Acho que posso comer aqui... Quero ver se você sabe mesmo...

- Deixa de ser chata, eu sei sim, quer ver? Ó...

Recomeçou as etapas, os dedos entrecruzaram-se sem chegar a um final positivo. Começou a suar frio, afastou a franja da frente dos olhos e olhou para ela meio sem jeito. Como quem ouvisse um pedido, ela guardou novamente a maçã na lancheira, agachou e puxou o pé dele, que desequilibrando-se quase caiu sentado. Ela não ligou.

- É assim que se faz, olha...

Em três breves movimentos ela deixou o all star preto dele novamente justo. Mas ele não queria dar o braço a torcer.

- Mas era assim mesmo que estava fazendo...

Ela sorriu, ele enrubesceu. Os dois sabiam que, para ele, o simples cadarço ainda era um enorme desafio.

01 outubro, 2008

Exacerbada Posse

Era violenta a dor que sentia na cabeça. Quando olhei para o lado, a janela estava aberta e a TV ligada, provavelmente eu havia deixado o seu despertador programado. Uma mulher loira estava mexendo um molho branco na panela, em companhia de um fantoche-papagaio que a interrompia de minuto em minuto. Desliguei a TV.

Eu ainda estava de gravata, camisa e sapatos no sofá. Meus lábios estavam doloridos e percebi que meu braço estava com uma marca roxa na altura do cotovelo. Devia ter pegado no sono sem perceber, parecia que eu havia dormido bastante, sentia que minha língua estava inchada mas não me lembrava direito da noite anterior. Tentei me levantar para ver o porquê da dor em meus lábios, mas minha visão escureceu, preferi encostar-me novamente na almofada. Fechei meus olhos.

***

Não estava gostando da forma como o sujeito olhava para ela. Ela estava linda como sempre, mas estava comigo, e ele devia perceber isso. A noite estava agradável, depois do cinema aquela roda de amigos na mesa me desligava da rotina estressante que eu enfrentava durante a semana. Segurei suas mãos, dei um beijo em uma delas, ela ficou surpresa e um tanto encabulada, eu queria mostrar quem estava realmente no controle. Tomei outros três drinques.

Ela desviava dos olhares fixos dele, mas o sujeito era insistente. Eu não sabia de onde ele havia saído, não era nosso amigo, nem ao menos sabia o seu nome, foi de repente que ele apareceu, tomando parte da conversa, me deixando extremamente irritado.

"Vamos sair daqui?!", pedi a ela num rompante já me levantando. Ela puxou meu braço para baixo, franziu a sobrancelha para mim e sorriu para o restante da mesa, tentando passar a impressão de que estava tudo bem. Mas não estava tudo bem, realmente não estava.

Todos davam gargalhadas. Eu já não prestava mais atenção no assunto da mesa, não suportava mais a sorrisinho cínico daquele idiota engravatado. Puxei-a pela cintura e dei-lhe um beijo. Ela ficou assustada e ao mesmo tempo constrangida, olhou para mim com cara de interrogação e perguntou o estava acontecendo. Naquele momento não consegui me segurar, ela já estava caindo nas investidas daquele retardado.

"O que foi? Já não posso te beijar? Acho que você prefere esse idiota não é?". Ela ainda não estava entendendo do que eu estava falando, mas quando ele me pediu para ficar calmo não consegui me controlar. Pulei por cima da mesa alcançando seu rosto com um soco meio frouxo. Ele caiu da cadeira num movimento desajeitado derrubando alguns pratos, talheres e duas taças que estavam sobre a mesa. Levantou-se com as o punho da mão direita escondendio a boca, os olhos já vermelhos e a respiração acelerada de ódio. Pulou ávido mirando em meu rosto. Senti seu punho afundar a carne da minha bochecha esquerda. Começamos então a nos esmurrar em socos mal aplicados, chutes sem direção e gritos de palavrões que remetiam a família ou masculinidade um do outro.  

Comecei a sentir uma dor latente em minha testa, uma sensação de calor cobriu o meu rosto. Já estávamos nos engalfinhando havia algum tempo sob uma roda de colegas de empresa, que riam ainda mais alto, soltando ordens de ataque.  Não conseguia mais me defender, minha disposição já havia sido dissolvida pelo álcool. Procurei pensar nela, onde ela estava, se conseguia me ver brigando por ela, se sentia orgulho de mim, se queria que eu me desse bem. Sentia gosto de sangue na minha boca quando perdi a consciência.

***

Esta e a caixa postal de Adalberto Moreira. No momento não posso atender, deixe seu recado após o sinal que retornarei assim que possível. Piii! "Oi Beto, espero que você esteja bem. Hoje pela manhã me ligaram perguntando de você. O seu amigo Marcelo disse que teve que te levar de táxi para casa na sexta, que você ficou um pouco machucado...  Precisamos conversar. Não hoje, ainda não sei quando.... Estou temerosa por nós dois, já não é a primeira vez que... Estou insegura com tudo isso, não sei aonde esse ciúme vai nos levar. Por favor, se cuida esta semana. Fique bem, um beijo."

22 setembro, 2008

A Carta


Não havia lido as letras minúsculas que estavam no verso da folha. Também não havia planejado receber uma carta surpresa, de despedida no aeroporto. Seriam apenas alguns dias que ela passaria suas férias longe, como ocorria nos últimos anos. Engoliu a saliva que se acumulara na boca, agora paralisada. Aquele não era um “até logo”, as palavras escritas não deixavam escapar um centelha de esperança, não havia naquelas linhas vestígios de insegurança no que afirmavam. Era definitivo, mas pelo que se lia, ela havia tentado com todas as forças fazer dar certo, parecia ter se cansado a final, dava a impressão de que não queria mais lutar por aquilo tudo e aquilo tudo, ele só percebeu que realmente existia quando leu a carta. Era culpa dele, somente dele, a relação ter chegado ao fim. Em suma era isso que dizia a carta. 

Ele já não conseguia raciocinar como há quinze minutos atrás, leu uma quantidade de verbos de ação conjugados no passado que o deixou assustado. Tentei, falei, pensei, planejei, fiz... Somente sentenciavam sua culpa no limite em que a relação chegara. Forçava, mas não reconhecia em sua memória os momentos que errara tão seriamente, para que as coisas chegassem aquele ponto.

O que mais faltava na relação? – se questionava. Ele ouvia, ele cedia, concedia, concordava, respeitava... Dobrou a carta e pôs no bolso, por um instante pensou em rasgá-la, sentiu um nó na garganta. Retirou a carta do bolso num movimento brusco, começou a ler em voz alta num tom de deboche, como quem lesse uma manchete bizarra do jornal. Ouviu a campainha tocar, num sobressalto se recompôs e foi até a porta. Pelo olho mágico viu o entregador com seu costumeiro boné vermelho, assobiando uma canção. Ao abrir a porta reconheceu a melodia do hino nacional. Tirou duas notas do bolso, “pode ficar com o troco”, uma reverência com o boné foi o agradecimento do rapaz que continuou a assobiar ao recolher sua mochila vazia e ir embora.

Voltou para o sofá, largou a pizza de queijo na mesa de centro e pegou novamente a carta. Passou a rememorar naquele instante todos os encontros, dias e noites das ultimas semanas para tentar descobrir quando falhara. Procurava um evento, uma situação que o delatasse, uma ocasião em que ficara nítida a sua falta de sensibilidade ou cuidado. Acendeu um cigarro que estava sobre a mesa, retirou as costas do sofá e recomeçou a leitura.

Aos poucos foi percebendo que ele era realmente o responsável, a cada linha que seus olhos exploravam, numa tentativa de análise atenciosa, sentia uma certeza estranha de que ele dera cabo da vida entre os dois. Na verdade havia se acostumado. Era uma conclusão que o incomodava, mas que lentamente se confirmava em seus pensamentos. Havia se acostumado a ser par, não lhe importava mais questionar, não lhe importava mais confidenciar, não compartilhava mais, não lhe importava discordar, se arriscar. Esquecera gradualmente de impor suas opiniões, perdera a sinceridade dos primeiros tempos. Apagou o cigarro.

Era omisso, a carta dizia a verdade, não tinha mais a intenção de ser presente, não queria confronto, queria ser ele mesmo sem precisar mudar. Uma lágrima pingou sobre a carta, ele rapidamente secou os olhos e deu um soco sobre a mesa de madeira maciça, que estremeceu, derrubando um porta-retrato “made in China”. Perdeu os sentidos de sua mão por alguns segundos, logo depois veio uma dor aguda. Percebeu que a dor era incomparável ao desconforto que sentia em seu peito. Era um sentimento forte, intenso, assemelhava-se ao sentimento de perda. Mas ele conheceu o sentimento de perda, quando sua mãe não resistiu às complicações de uma cirurgia e o que sentia naquele momento era diferente... Não sabia explicar a ele mesmo nem o porquê, nem como.

Quando percebeu que sua mão estava sangrando, soltou a carta. Ela fez círculos no ar e pairou lentamente sobre o centro de vidro, deixando as frases finais em evidencia sob a luz. Foi nesse instante em que ele percebeu algumas palavras escritas no rodapé em letras ilegíveis. Aproximou o rosto da mesa, o sangue que banhava sua mão e braço começou a escorrer lentamente, alcançando a borda da carta. E antes daquele vermelho- chumbo se alastrar pelo papel ele conseguiu ler as últimas palavras. “Espero que um dia você perca o medo de amar.”

17 agosto, 2008

Pensar


Pensar no mínimo, pensar
No mínimo pensar, pensar
O mínimo pensar, pensar
Pensar e pensar, no mínimo
No mínimo, no mínimo, pensar
Pensar, pensar e pensar.

No mínimo, o mínimo, mínimo
No pensar, o mínimo, pensar
Pensar no pensar, o mínimo
Ao menos no mínimo pensar
Ao menos pensar o mínimo
O mínimo pensar
Mais que pensar no mínimo.