22 setembro, 2008

A Carta


Não havia lido as letras minúsculas que estavam no verso da folha. Também não havia planejado receber uma carta surpresa, de despedida no aeroporto. Seriam apenas alguns dias que ela passaria suas férias longe, como ocorria nos últimos anos. Engoliu a saliva que se acumulara na boca, agora paralisada. Aquele não era um “até logo”, as palavras escritas não deixavam escapar um centelha de esperança, não havia naquelas linhas vestígios de insegurança no que afirmavam. Era definitivo, mas pelo que se lia, ela havia tentado com todas as forças fazer dar certo, parecia ter se cansado a final, dava a impressão de que não queria mais lutar por aquilo tudo e aquilo tudo, ele só percebeu que realmente existia quando leu a carta. Era culpa dele, somente dele, a relação ter chegado ao fim. Em suma era isso que dizia a carta. 

Ele já não conseguia raciocinar como há quinze minutos atrás, leu uma quantidade de verbos de ação conjugados no passado que o deixou assustado. Tentei, falei, pensei, planejei, fiz... Somente sentenciavam sua culpa no limite em que a relação chegara. Forçava, mas não reconhecia em sua memória os momentos que errara tão seriamente, para que as coisas chegassem aquele ponto.

O que mais faltava na relação? – se questionava. Ele ouvia, ele cedia, concedia, concordava, respeitava... Dobrou a carta e pôs no bolso, por um instante pensou em rasgá-la, sentiu um nó na garganta. Retirou a carta do bolso num movimento brusco, começou a ler em voz alta num tom de deboche, como quem lesse uma manchete bizarra do jornal. Ouviu a campainha tocar, num sobressalto se recompôs e foi até a porta. Pelo olho mágico viu o entregador com seu costumeiro boné vermelho, assobiando uma canção. Ao abrir a porta reconheceu a melodia do hino nacional. Tirou duas notas do bolso, “pode ficar com o troco”, uma reverência com o boné foi o agradecimento do rapaz que continuou a assobiar ao recolher sua mochila vazia e ir embora.

Voltou para o sofá, largou a pizza de queijo na mesa de centro e pegou novamente a carta. Passou a rememorar naquele instante todos os encontros, dias e noites das ultimas semanas para tentar descobrir quando falhara. Procurava um evento, uma situação que o delatasse, uma ocasião em que ficara nítida a sua falta de sensibilidade ou cuidado. Acendeu um cigarro que estava sobre a mesa, retirou as costas do sofá e recomeçou a leitura.

Aos poucos foi percebendo que ele era realmente o responsável, a cada linha que seus olhos exploravam, numa tentativa de análise atenciosa, sentia uma certeza estranha de que ele dera cabo da vida entre os dois. Na verdade havia se acostumado. Era uma conclusão que o incomodava, mas que lentamente se confirmava em seus pensamentos. Havia se acostumado a ser par, não lhe importava mais questionar, não lhe importava mais confidenciar, não compartilhava mais, não lhe importava discordar, se arriscar. Esquecera gradualmente de impor suas opiniões, perdera a sinceridade dos primeiros tempos. Apagou o cigarro.

Era omisso, a carta dizia a verdade, não tinha mais a intenção de ser presente, não queria confronto, queria ser ele mesmo sem precisar mudar. Uma lágrima pingou sobre a carta, ele rapidamente secou os olhos e deu um soco sobre a mesa de madeira maciça, que estremeceu, derrubando um porta-retrato “made in China”. Perdeu os sentidos de sua mão por alguns segundos, logo depois veio uma dor aguda. Percebeu que a dor era incomparável ao desconforto que sentia em seu peito. Era um sentimento forte, intenso, assemelhava-se ao sentimento de perda. Mas ele conheceu o sentimento de perda, quando sua mãe não resistiu às complicações de uma cirurgia e o que sentia naquele momento era diferente... Não sabia explicar a ele mesmo nem o porquê, nem como.

Quando percebeu que sua mão estava sangrando, soltou a carta. Ela fez círculos no ar e pairou lentamente sobre o centro de vidro, deixando as frases finais em evidencia sob a luz. Foi nesse instante em que ele percebeu algumas palavras escritas no rodapé em letras ilegíveis. Aproximou o rosto da mesa, o sangue que banhava sua mão e braço começou a escorrer lentamente, alcançando a borda da carta. E antes daquele vermelho- chumbo se alastrar pelo papel ele conseguiu ler as últimas palavras. “Espero que um dia você perca o medo de amar.”