07 abril, 2009

No barbeiro

Fui ao barbeiro. Não para fazer a barba, pois os pêlos que se alastraram em meu rosto depois de crescido eram ralos, indignos de receber uma definição formal, mas para dar um trato na cabeleira encaracolada, que já chegava à nuca e em dias de calor me deixava enervado.

Antes de entrar no salão, a cabeça encheu- se de lembranças. Foi um velho de sardas escuras que aparou ali meus cabelos nos primeiros anos. Tempos passaram; troquei de casa, de rua, de bairro, mas voltei à mesma casa, a mesma rua e ao mesmo bairro. Não sabia se o velho permanecera ali por tantos anos e sem perder tempo aliei minha necessidade à curiosidade nostálgica e abri a porta de vidro deslizante.

Deparei-me com um ambiente abafado e escuro para as onze da manhã, vi à esquerda uma cadeira giratória posicionada em frente ao espelho, pendurado numa parede amarelada cheia de marcas de infiltração. Não me recordei de detalhe algum naquele espaço, senti um odor espesso impregnado enquanto procurava a imagem do velho barbeiro.

Ouvi uma tosse pigarrenta. No fundo do salão, de alpercatas pretas, calça branca e camisa de flanela, o velho lia um jornal. Fiz um ruído com a garganta e disse bom dia. O jornal foi posto de lado, a lâmpada acesa e os olhos apagados fixados em mim. “Olá, eu queria aparar o cabelo, aqui dos lados.” Sem palavras ele descruzou as pernas, levantou-se, pegou a toalha e apontou para a cadeira giratória. Sentei-me sem questionar, vi que os sulcos intermináveis de sua fronte a bochechas eram agora mais fundos do que no meu tempo de menino, assim como mais escuras e opacas as sardas de seu nariz.

Repeti algumas vezes como eu queria que meu cabelo fosse aparado. O velho não tinha interesse, nem sequer ouvia enquanto ajeitava a altura da cadeira, abria e fechava gavetas, conferia tesouras, navalhas e lâminas. Envolveu meu pescoço com a toalha e deu o último toque na cadeira. Após outra tosse crua, pegou do bolso da camisa um cigarro, da calça um isqueiro e com prazer começou a fumar às baforadas. Meu ar de espanto não o surpreendeu e para o velho não importava a opinião alheia, ali era o seu espaço, uma decadência original tomara conta de tudo nos anos recentes e caso eu quisesse ter meu cabelo aparado teria de ser à maneira dele, sem contrariá-lo

A aura sinistra do velho barbeiro se ampliou assim que pegou a tesoura. O silvo fino que ela fazia em suas mãos logo remeteu minha mente as imagens de assassinos em série, personagens egocêntricos e insanos, filme noir, num misto quase agradável de assombro e morbidez.

Com um pequeno pente afastou algumas mechas paras os lados, olhou como se em minha cabeça estivesse um ninho de pombos, tossiu outra vez com a mão cobrindo a boca, deu mais uma sorvida fervorosa no filtro e iniciou seu trabalho. Da direita para a esquerda, contornando toda a minha cabeça, o velho saiu picotando aos bocados os meus cabelos pretos. Não se contentava, parecia querer deixar peladas as áreas que rodeavam minhas orelhas. Juntei as sobrancelhas com um semblante de ira agoniada, sem poder me mexer e no instante em que me preparava para detê-lo, sua tesoura se aquietou. Em rápidos minutos passou a navalha no limite dos meus cabelos para finalizar o corte. Jogou a bituca no canto do salão e com movimentos ensaiados retirou a toalha do meu pescoço. Apalpei devagar as áreas onde agora os cabelos eram ausentes, pelo espelho ele ergueu o queixo para mim, a cara fechada, questionando minha reação ao resultado. “Está bom, bom... Quanto é mesmo?” Ele já não estava por perto, voltara a mexer nos pentes, tesouras e cabelos espalhados pelo chão, ajeitando tudo com empenho. Olhei para a placa na porta de vidro: ela marcava dez ao contrário. Peguei o dinheiro da carteira e deixei em cima da gaveta menor. Dirigi-me até a porta cheio de arrependimento, mas mesmo assim insisti em agradecê-lo. Quando olhei para trás o velho já estava no fundo do salão, lendo seu jornal e fumando compulsivamente.

3 comentários:

Anônimo disse...

Mais um fantástico texto, Amauri! Senti uma leve referência ao quanto a rotina acaba se tornando algo mecânico para nós. Deixamos de querer ver o que está ao nosso redor e ficamos totalmente absortos naquele ritual que domina nosso dia-a-dia.

b disse...

VC disse que esta se cobrando quanto a "descritividade " dos textos.... Desencana e escreve... ponto.... vc é descritivo? Foda-se.. saca? é seu estilo... e é o que da vida a seus personagens.. o que nos faz sentir parecidos com eles... parabens..

Joana disse...

Eu, Tu, Ele, Nos, Vos, Eles... todos tem vez e voz.

Gostei muito de tu em primeira pessoa!

Ansiava por isso.

Ah, e a "ira agoniada", voce sempre me intriga com algumas combinacoes. Alquimico.

(tudo sem acentuacao, nao repare teclado estranho...)