26 dezembro, 2008

Noite


Na porta da geladeira somente duas garrafas de água. Encheu um copo e foi para o seu casulo. Deixou a mochila sobre a cadeira e lançou-se exausto sobre a cama. Seus olhos latejavam como que quisessem saltar das órbitas. Aspirou com esforço o ar em seu entorno que inflou o pulmão tão rápido quanto o esvaziou. Aquele vazio de alívio foi a melhor sensação do seu dia, eram duas da manhã quando repousou a cabeça sobre o travesseiro.

Abriu os olhos assustado com a claridade, quando virou o pulso viu que ainda era madrugada. No teto as estrelas fluorescentes coladas há poucos meses; nas prateleiras os livros de sempre, empoeirando sob a indisposição de descobri-los, nas paredes escuras as telas compradas em qualquer feira de arte. Pressentia agora que seus olhos estavam vermelhos, tal o incômodo que sentia. O sono não vinha. Ligou a televisão na tentativa de distrair seu cansaço. Mudou de canal compulsivamente até apertar o power num ato involuntário. O silêncio. Fechou os olhos, sentiu-os quentes e doloridos.

Sentou na cama e enquanto tomava o copo d’água passou a refletir sobre a infância, seus dias de menino, os tempos corridos com bola, pipa e pião. Quando criança, ao que emergiu em sua lembrança, não tinha tristezas. Subia em árvores, corria pelas escadarias do prédio, era soldado, médico, bombeiro e ladrão, tudo ao mesmo tempo sem sentir a seriedade do tempo.

Por um momento relembrou seu aniversário, uma festa de sorrisos, recheada de cores. Na hora de entoar a cantiga apertou os olhos em frente a vela em formato de oito em cera e num sopro mirado desejou de coração palpitando que crescesse logo. Queria ser homem de negócios. Como o pai, queria trajar ternos pretos e gravatas cinzas, ter uma pasta, ter uma barba...

Um frio repentino, viu que a janela estava aberta. Naquela madrugada já no primeiro sono queria ser novamente aniversariante, ter um bolo e um pedido a ser feito.

17 dezembro, 2008

A Pequena Tiná e a Segunda série B *

Era sempre em uma das últimas cadeiras no canto esquerdo da sala 2, que se acomodava uma menina miúda, dos cabelos vermelhos, rosto rechonchudo e repleto de sardas. Com sua mochila de lã sempre jogada debaixo da carteira, era com seus lápis coloridos que adorava florir o caderno, lápis esses que por mágica não duravam uma semana no estojo.

Tiná era como todos a chamavam, e ela bem que preferia atender por esse nome que pelo verdadeiro. Rita Rosa dos Reis, também o nome de sua avó, soava muito sério para ela que com sete anos vivia rodeada de Dudas, Gugas, Léos, Jucas e outros tantos diminutivos pelos quais chamava seus amigos. Por falar em amigos, isso era o que Tiná mais tinha na segunda série B, corredor 2, no segundo andar, da Escola Amarela que ficava a duas quadras da sua casa.

Por coincidência ou não a vida de Tiná era cercada pelo número dois, tanto era que há pouco tempo também ela tinha se tornado a segunda no posto de atenção na família. Pedro Paulo dos Reis, o Pepê, já estava com três meses e mesmo sem dentes na boca, nenhum fio de cabelo na cabeça e de corpo todo molengo, já era dono por completo dos mimos de seu Plínio e dona Alice, fato que Tiná não conseguia entender o porquê, mas vamos deixar para falar disso mais tarde.

Como estava dizendo, Tiná tinha muitos amigos. Mas com certeza os que mais gostava de estar junto, tanto pelas brincadeiras quanto pelas traquinagens eram Juju, Biazinha, o Caco e Cadu. Era na companhia deles que Tiná deixava a professora Beth, uma mulher alta que só usava vestidos xadrez e uns óculos vermelhos bem esquisitos, de cabelos em pé do começo ao fim da aula.

Tiná adorava sua escola. Amava estar naquela sala apertada, cheia de cartazes nas paredes, uma imensa lousa verde contornada de letras e números de borracha. Usar aquele uniforme com listras, brincar de amarelinha no pátio em frente à cantina, ou de esconde-esconde por entre as árvores que cercavam o campo gramado, eram coisas que Tiná fazia todas as manhãs na maior animação.

*          *          *          *         

Era uma manhã ensolarada de segunda-feira. Tiná já havia feito toda a lição e ajudado a amiga terminar a dela. Biazinha tinha a maior dificuldade com Matemática, no entanto era fera em Ciências, assim recompensava Tiná dando uma mãozinha em seus deveres de casa. Já também cansada de contar piadas para Caco, que estava roxo e esparramado na carteira de tanto rir, Tiná resolveu armar mais uma brincadeira para encher a paciência de Bia Flor.

Pois é. Na sala 2, do corredor 2, no segundo andar da Escola Amarela havia duas Ana Beatriz. Ana Beatriz Barão era a mais serelepe e da turma de Tiná, já Ana Beatriz Flor fazia parte do canto cor-de-rosa da sala, com seus cabelos louros e lisos até os ombros, tinha três amigas com as quais andava quase sempre idêntica. Adorava fazer inveja a todas as outras meninas da classe com suas roupas sempre novas e as pulseiras douradas que sua mãe lhe dava de presente. Era a maior festa quando Tiná deixava Bia Flor irritada ou com os olhos arregalados. Quando Bia Flor se assustava arregalava os olhos parecendo um peixe-boi, o que fazia a classe inteira cair na risada.

Tiná havia levado na mochila um dos asquerosos de mentira da sua coleção. Como sabia que Bia Flor morria de medo de insetos - descobrira sem querer num recreio quando uma abelha pousou em cima da lancheira da menina, que jogou o sanduíche de queijo para o alto, espalhando suco por toda mesa com gritos de “Socorro!!!” – foi justamente a barata gigante que Tiná tirou e com imenso cuidado amarrou junto ao cadarço do sapato aveludado de Bia Flor. Não demorou muito para começar o show. Como Bia Flor era uma das alunas mais aplicadas – e gostava de mostrar isso a todo mundo – não hesitada em responder uma pergunta se quer que a professora Beth fizesse. Já estava acabando a manhã e para finalizar a aula, a professora perguntou quem saberia resolver a soma que estava na lousa. Mal ela terminou a indagação e já se via uma mãozinha pequena erguida ao lado da porta, na primeira fileira, com os dedos pequenos se agitando para o alto. “Eu, eu, eu!” – dizia Bia Flor acelerada já se levantando da cadeira.

Com cinco passos curtos Bia Flor chegou até o canto direito da lousa, sem saber o que a seguia no seu calcanhar. Pegou um pedaço de giz amarelo e começou a formar o primeiro número da soma, fez tanta força para escrever um sete que acabou partindo o giz ao meio. Já se podiam perceber uns risos espalhados pela classe, pois alguns já percebiam aquele objeto marrom de mais ou menos um palmo grudado em seu sapato e sabiam que só podia se tratar de mais uma das peripécias de Tiná.

Agora, depois de alguns minutos, Bia Flor só precisava finalizar somando os números cinco e seis. Utilizava os dedos, que pareciam não dar conta.  Foi ficando mais nervosa por não saber terminar aquela operação - que já havia respondido em seu caderno – e por perceber que aumentara em seu redor as risadinhas e cochichos.

Mas foi no momento em que sentiu uma cosquinha por cima da meia rosa e olhou para baixo que seu nervoso foi as alturas. “Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai mamãããããããããe!!!” – era o que se ouvia durante meia hora, com Bia Flor correndo por toda a sala, empurrando as cadeiras, subindo em cima das carteiras, com os olhos saltados do jeito que só ela sabia ficar. A segunda série B gargalhava sem parar.  A pequena sala por alguns minutos mais parecia um circo, com uns batendo palmas de um lado, outros assobiando de outro... Em meio a essa confusão repentina o que pareceu mais esquisito para professora Beth foi ver a aluna ruivinha da sala, sentada totalmente em silêncio lendo, (ou tentando ler) um livro de Ciências da oitava série. Não deu outra, a professora já sabia perfeitamente quem havia armado a brincadeira com Bia Flor. Com um único “Xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu” a sala voltou ao normal, assim como os olhos esverdeados de Bia Flor, que retornou toda envergonhada a sua cadeira e se sentou, arrancando a barata com um puxão, que de perto parecia uma folha seca.

Com o dedo indicador a professora Beth chamou Tiná à sua mesa, e num movimento brusco de sua mão pôs na frente do nariz da menina o caderno de disciplina. “Mas professo...” – “Sem mais Rita! Quero isso resolvido em minha mesa amanhã no início da aula”. O caderno de disciplina era uma série de exercícios caprichados que a professora elaborava num enorme fichário de capa dura cinza, feito para os alunos que atrapalhavam sua aula, mas que geralmente acabava sempre nas mãos de Tiná. Era graças a esse caderno que Tiná se dava bem em Matemática, resolvia tudo o que estava nele em pouco tempo.

A classe já havia voltado ao normal. Tiná guardara com muito custo o caderno de disciplina na mochila. Bia Flor, após ter recortado a barata em pedacinhos com a ajuda das amigas, também voltara ao seu estado normal, pois falava alto sobre seu conjunto de lápis de cera novo, arrumando os cabelos e olhando satisfeita para a mochila “cheia” de Tiná.

A professora Beth terminou a chamada e todos só aguardavam o “berro” da sineta que fazia o silêncio daquela escola se transformar no som de um estádio de futebol de uma hora para outra. Nem parecia que há poucos minutos aquela sala apertada tinha sido palco de uma enorme confusão. Todos calados guardando suas coisas... Na segunda série B era assim, tudo terminava bem.

“Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!!!!!!”


* Primeiro capítulo de um futuro livro infantil que pretensamente comecei (somente isso) a escrever em 2005.

11 dezembro, 2008

Ocasião


Ela chegou. Ele demorou, mas também chegou. Ele queria redimir-se, mas lhe faltavam argumentos. Ela no outro canto trocava palavras com outros. Ele a viu. Ela não o notou. Ele estava covarde. Ela estava machucada. Uma música tocava, ele respirou. Ele andou em sua direção, ela não o notou. Uma música tocava, ela pensava nele. Ele a viu de perto, sentiu seu perfume, quis tocar seus cabelos. Ela não o notou. Uma música tocava, ele tomou coragem e falou. Ela o viu, finalmente o notou. Ele teve medo, mas ela sorriu. A nuvem se dissipou. Ele fez declarações, ela o questionou. Uma música tocava, ele sentia seu coração. Ele pediu, ela novamente o aceitou. Uma música tocava. Novas promessas foram feitas. Ele pegou em sua mão, ela ternamente a apertou. Ele fitou seus olhos, feliz. Ela também os dele fitou. Uma música tocava. Uma história recomeçava.

03 dezembro, 2008

Preguiça, esta senhorita




Às vezes ela vem. Vem silenciosa ao final da tarde, exalando aroma envolvente e abafado de pôr-do-sol. Ela vem e cochicha em teu ouvido que o melhor é não arriscar, que a melhor decisão é que permaneças onde estas.

Às vezes ela vem no inicio da manha, imita o cantar doce dos pássaros que pousam na janela e te seduz numa tranqüilidade fora de hora, e escreve um bilhete em teu pensamento com letras arredondadas um recado feito conselho: “A responsabilidade é para os tolos.”

Ela vem quase sempre nos finais de semana, fazendo música ao sabor dos teus ouvidos. Dotada de perspicácia, ela traz nas ondas sonoras o timbre cortante de guitarra, apagando com delicadeza os planos que tu elaboravas na memória. Ela vem na melodia da voz soprano e num passe de mágica que não sentes, leva-te ao prazer da acomodação.

Ela vem e confessa a ti que apenas quer teu bem. Você não atenta que a verdade já fugiu dos olhos dela há muito tempo. Quando cais em si, pergunta: “Onde está a verdade que fazia morada nestes teus límpidos olhos?”. Ela, sagaz engana-te mais uma vez lançando uma interrogação que faz nó em tua razão: “O que é a verdade?” Assim torna-te novamente crédulo.

Quando pões a confiança aos cuidados dela, passas a assumir um caso de devoção sem remédio. É a partir daí que teus passeios com ela passam a durar períodos de tempo cada vez maiores. O tempo para ela não importa e de repente, sem que percebas teu tempo é só dela. Ela vem ao anoitecer, faz-lhe afagos na nuca da lógica e em pouco tempo adormece tua consciência.

Quando assumes compromissos, ela vem tratar contigo, traz-lhe presentes, passeios, televisão, faz festa ao teu redor e ata teus braços com fitas coloridas. Assim, tu preferes adiar tudo o que te chateia e ficas só em companhia dela.

Ela vem sempre quando traças projetos. As obrigações, para ela, são tarefas mesquinhas e com um belo discurso olhando em teus olhos, convence-te desta idéia. Ela faz teatro. Uma bela peça, e tu estas ali no palco, cansado, num mundo desleal em que qualquer esforço maior não faz diferença. Ela conquista-te com este texto. É nesta hora que tu adormeces, ela fecha as janelas, apaga a luz e trama com as horas do relógio, que após um acordo passam a correr aceleradamente livres.

É o que ela quer. O maior desejo da senhorita é fazer-te adormecer em sono profundo. E tu, quando dormes, fazes isto em todo canto. Em casa, em frente ao livro, no trabalho, em frente às planilhas, na declaração de amor via buquê de flores.

Quando te deixas levar pela senhorita em seu sono encantado, perdes a identidade, perdes o desejo, ficas morno, não frio porque ainda vives, mas morno porque passas a ser comum, moribundo.

Queres ser feliz? Não te apegues à senhorita.