20 junho, 2012

Do amanhã


Era seu contentamento receber o filho à noitinha, as panelas recém saídas do fogão: o arroz colorido de cenouras, o feijão gordo de toucinhos, perfume das duas folhas de louro. Ele não reparava no tato hesitante, na voz melodiosa e menos ainda na expressão cativa que ela manifestava assim que ouvia suas coisas se espalharem barulhentas pelo interior do quarto. Viúva de marido vivo, ela confiava sua vida - sobrevivida - no futuro daquele rapaz barbado, amigo do silêncio e da rotina, que empurrava para o canto do prato a carne ensopada, olhava o copo quase vazio e levantava para o banho antes de se deitar. Assim que ele fechava a porta, sussurrando boa noite, o desenho de um sorriso surgia imediato no rosto dela. Era naquele instante exato que diariamente uma oração subia, gratidão seguida de desejo: que seu sono seja de paz e descanso para o que a de vir amanhã.

14 agosto, 2011

#1 Letra & Música



Sem Você
Composição: Carlinhos Brown / Arnaldo Antunes

pra onde eu vou agora livre mas sem você?
pra onde ir o que fazer como eu vou viver?
eu gosto de ficar só
mas gosto mais de você
eu gosto da luz do sol
mas chove sempre agora
sem você


às vezes acredito em mim mas às vezes não
às vezes tiro o meu destino da minha mão
talvez eu corte o cabelo
talvez eu fique feliz
talvez eu perca a cabeça
talvez esqueça e cresça
sem você


talvez precise de colchão, talvez baste o chão
talvez no vigésimo andar, talvez no porão
talvez eu mate o que fui
talvez imite o que sou
talvez eu tema o que vem
talvez te ame ainda
sem você

06 fevereiro, 2011

De uma tarde de sol

Foto por Thiago Beleza

Ela sabia que ele a esperava. Sabia onde, aos domingos. Sempre o via, já o conhecia. Permanecia por entre os muitos ali, ao todo mais de seis bilhões, nas tardes de sol com sombras de árvores e poucas flores. Ele já não sabia o que fazer para encontrá-la. Pensou chamá-la em voz alta. Mas não sabia seu nome. Pensou em gritar um "vem" no meio de todos, com força igual a do oxigênio que enchia seus pulmões, ali. Será que ela sairia de onde estava e atenderia finalmente o seu pedido? Esqueceu a ideia enquanto andava por entre o caminho aberto ao redor do lago. Mais uma tarde de Sol. Via claramente um sopro de bonança sobre os corações antes inflamados de paixão. Aos pares, todos os presentes eram calmos, em afagos e olhos risonhos. Procurou-a entre a multidão, mas não a viu. Não sabia como era sua fisionomia. Sentou-se em uma clareira, esperando que ela desse algum sinal, que fizesse um psiu por entre a brisa, que mostrasse alguma preocupação com a ansiedade dele. Som de violões. Muitas cordas dedilhadas ao sabor da tarde, o calor animando as peles, as folhas verdes balançando despreocupadas nos topos. O sol brilhando para ele e sorrindo para ela do outro lado. Distante? Ele não sabia, só sabia que sorria. Decidiu então escrever um bilhete, ou melhor, vários bilhetes que deixaria aos pés das árvores. Seriam muitos, muitos bilhetes com os mesmos dizeres: "É você?" Uma interrogação caprichada no final. Assim ela perceberia que ele insistia de verdade em sua procura e responderia um deles. Antes ela daria um sorriso lisonjeada, pensou, daí pegaria um lápis qualquer e rabiscaria: "Sou eu, aqui perto de você." Depois de muito escrever e esperar, ele voltou recolhendo os bilhetes, um por um, debaixo de cada árvore. Recolheu, dobrou todos e os colocou no bolso. Voltou para a clareira, sentou, o coração em pé. Antes de escurecer ela apareceu com um dos bilhetes na mão. Ele levantou sorrindo, já ofegante. Ele notou que o papel estava amassado. Olhou nos olhos dela, mas não encontrou nenhum sorriso. Um violino começou a tocar. Era um violino? Distante, solitário, uma nota longa constante, cortante. Ela se aproximou e estendeu a mão pequena, o bilhete entre os dedos indicador e médio. Os olhos dele brilhando, ânsia de felicidade. "É você?" Silêncio. "Achei jogado perto do lago, vi que você recolheu todos. Toma." Os muitos bilhetes escureceram como o dia no seu bolso. Não foi naquele final de tarde que ela se revelou dentre os mais de seis bilhões presentes.

27 julho, 2010

Recorte do não e talvez


Um ambiente frio. Não rolei escada abaixo, mas ali senti o corpo dolorido, mastigado. Desde que ouvi dela o não e suas ações comigo continuaram indiferentes à decisão, passei a imaginar como seria se tivéssemos adiado a tal conversa e forçado o certo, nós, no plural. Só senti o efeito disso tudo, aquele dia, naquela despedida.

Sua forma de lidar com a situação, não me ajudava em nada a supera-la, ela e a situação. Latências e ausências mesclaram-se sinuosamente durante alguns dias, ou melhor, durante o terço dos dias que torturado passei ao seu lado, distante um palmo.

Esquecia o incômodo da solidão quando via escapar de seus lábios um sorriso. Fazia questão de tentar vê-lo uma vez mais e inventava jeitos para isso. Mas foi a presença constante de um cenho franzido que, naquele dia me fez sentir nulo ao seu lado, para não dizer excesso, infantil e pálido.

Por que não me disse o talvez? Uma das mais insensíveis respostas, porém, sempre acompanhada de expectativas que nos forçam a ser otimistas.

Roda na minha cabeça um filme, o filme da noite que começamos. Não sei lidar com noites, sou um ser diurno e não há o que contestar, as mazelas que acometem a minha pessoa surgem ou viram realidade após a meia noite. A imagem é tão límpida quanto a intenção que via nos olhos dela. O som, as luzes, as mãos eram movimentos sem peso de consciência, o refrão que ela fazia questão de entoar... Unitários por fim viraram par, duo, binários. No entanto os pensamentos, as ações a o coração não andam no mesmo compasso.

Foi com o não e um leve encostar de lábios em uma bochecha suja de penugem, que permaneci imóvel naquela encruzilhada, obrigado a respirar fundo e seguir com meu corpo surrado n'outro rumo. Sempre assim. Mas não sai da cabeça como teria sido se eu tivesse ouvido dela o talvez.

26 julho, 2010

Um dia, uma infância

O ano é distante e a personagem que viveu esta história, pequena. É a segunda mais velha de quatro filhos, que adiante no tempo tornar-se-iam dez. Mora em um sítio daqueles próprios de histórias infantis, que tem criação de galinhas, patos, perus, cabras, ovelhas e bodes. As hortas e o pomar também dão gosto de descrever. Deles saem milho, feijão, batata, pinha, mandioca e caem cajus, mangas, laranjas e algumas pitombas.

A família apesar dos pesares, nos momentos em que esquece o desconforto e a ausência paterna, vive feliz. A mãe é figura dominante no dia da casa. Às tardes vai ao rio que corre perto do sitio para lavar as xícaras, panelas e banhar as crianças. A menina é de se encantar com as cores que preenchem o sitio, principalmente das flores pequenininhas que cobrem a copa, flores que só depois de adulta descobrirá se tratar de ipês amarelos. Uma de suas maiores alegrias em dias ensolarados é ajudar a mãe a carregar a cesta de milho verde. Seu irmão mais velho, mais magro e moreno é seu maior companheiro de pesca de pesca no rio, sempre às escondidas, enfeitando a infância.

Numa tarde de pouco sol a menina fica incumbida de cuidar das duas irmãs, a caçula de nove meses e a terceira dos quatro filhos. Como é linda a caçula, tem a pele apessegada, rechonchuda, com dobrinhas em todo o corpo, lindos cabelos negros e encaracolados. Dorme sorridente na rede listrada, pendurada por cima da cama dos pais. O quarto, pequeno e abafado, não tem guarda-roupas, ararás, prateleiras ou dessas coisas da cidade grande. A família arranjava-se com um varal sobre a rede, com as roupas e lençóis pendurados, como que guardados.

A menina está em outro cômodo da casa, entretida com ela mesma, até que escuta um grito ardido. Fica aflita, pensa logo na pequenina e corre para o quarto. Ao abrir a porta, sua outra irmã está em pé num tamborete de madeira contemplando curiosa o rosto da recém-nascida, um candeeiro de chama dançante, erguida acima da altura da cabeça... A menina não compreende o que está vendo, percebe labaredas de fogo, retalhos e fumaça misturadas com os agudos gritos do pequeno bebê. Corre ao encontro da mãe, lhe diz que há fogo na casa, que o bebê estava no quarto, que a irmã acendeu um candeeiro, que as roupas... Percebe a feição da mãe mudar. Das mãos firmes dela, caem a cesta de milho. Não sabe o que pensar...

O lindo bebê deixa a casa por um tempo. O tratamento dura algumas tristes e silenciosas semanas e a criança é mandada de volta para cuidados no sítio. A menina vê que sua irmãzinha não é mais a mesma. Seu corpinho já não é mais o mesmo. Após algumas dias de cuidados e reservas a pequenina deixa a casa, agora para sempre. Passa a predominar no sítio, uma sensação cortante, amarga. A menina passa a não mais contar com olhar confidente da mãe, menos ainda com o seu amor. Sofre desprezo e culpa indevida ao mesmo tempo, por um longo tempo. Mas cresce. Decide um dia procurar o seio materno para chorar o que não conseguiu no fatídico dia. É ouvida. Recupera a coragem para continuar crescendo e mais tarde compartilhar esta história - numa tarde também de pouco sol, sob lágrimas e infinitos outros detalhes - com os próprios filhos.

(Texto elaborado para fins acadêmicos. Adaptado para o blog com uma mescla de realidade e ficção, assim como fazemos quando relatamos algum episódio do passado em uma conversa.)

14 julho, 2010

Porque boas ideias não podem ser desperdiçadas

(Aos amigos Augusto, Carla, Juliana e Henrique)

Existem momentos compartilhados à mesa que logo depois de vividos provocam a imediata certeza de que foram importantes para você, não se sabe como e nem porque, talvez o tempo diga mais adiante. São momentos simples, sem caretices, acima de tudo sinceros, com poucas exigências, características que os tornam ainda mais genuínos e agradáveis.

Dos que compartilham a mesa, uns apreciam o efeito do álcool unido ao gosto amargo da cevada fermentada. Outros, abstêmios e por vezes mais silenciosos, são movidos pela cafeína gaseificada da lata vermelha. Mas tanto uns quanto outros não dispensam as doses cavalares de gordura saturada, que acompanham a já quase tradicional porção de fritas. Nessa levada, os protagonistas desses momentos explicam a vida, expõem visões críticas do mundo que conhecem, ensinam e aprendem sem perceber.

As discussões seguem em prosa e ar livre. Passeiam por assuntos aleatórios, sérios, amenos, complicados e mórbidos. Fala-se sobre o nascimento, a morte e tudo o que acontece no intervalo entre um e outro. Sem perceber, os integrantes da mesa proferem certezas, máximas e frases de efeito com a confiança que só a juventude pode proporcionar. De início, no fervor da discussão, ouve-se a afirmação de que o amor, o dom maior, aquele registrado e propagado pelas escrituras sagradas, "o amor é uma merda!"

Da outra ponta da mesa, num rompante aconselhador, rememorando vivências certamente influenciadas pelo mesmo amor bíblico anteriormente achincalhado, uma voz proclama: "em que bueiro eu deixei meu amor próprio?" Ao ouvir tais palavras a mesa se enche de riso e os integrantes mergulham sem reservas na discussão sobre o dito sentimento. Subjetivo, multilateral e com efeitos divulgados nos livros, na música, na literatura, o amor é dos sentimentos que mais causa sofrimento ao homem, mas uma voz sensata, puramente racional sentencia em dado momento: "quem permite o sofrimento é você!"

Há na mesa quem já aprendeu boas lições da vida, ainda que o tempo vivido não tenha ultrapassado pouco mais de duas décadas. Sem pestanejar, segura das palavras e de seus efeitos no universo depois de proferidas, afirma: "eu não fico mais desesperada, porque as coisas passam." Impressiona perceber profundidade e recomendação ímpares na afirmação aparentemente óbvia.

"É muito fácil subestimar o destino!" Beirando a exaltação a declaração é posta na mesa. O tom é de quem sabe que na vida não há previsão, e que mais frágil que o nosso futuro, são as certezas que temos dele. Com sutil sabedoria, não sabendo se para complementar ou contrapor, isso pouco importa, outra voz dissonante declara que "a vida está nos olhos de quem vê."

Os momentos compartilhados a mesa sempre atingem seu clímax, o ápice. Não se sabe se o momento é percebido por todos os integrantes, mas é nele em que a mesa une-se em cumplicidade, em que visões opostas, afirmações e negações são lançadas sem reservas. A altura da conversa se eleva, os risos são mais espontâneos e ainda mais abrangentes, os copos se esvaziam e novas garrafas são solicitadas. Percebe-se na euforia certo fortalecimento dos vínculos de amizade.

Na troca de exclamações ocorrem até paráfrases, que remetem a integrantes que nunca compartilharam desses momentos a mesa, integrantes sábios que acrescentariam valor aos devaneios, uma vez que proferiram para quem quisesse ouvir que “covarde é aquele não tem coragem de amar!’’

É preciso sim coragem para amar, pois o amor, ao contrário dos momentos partilhados à mesa, é exigente e depende inteiramente de seus integrantes e, mais além, dos integrantes do mundo para que seja proveitoso e traga mais felicidade que dores. Mais fácil é a paixão. Mais fácil? Talvez mais inconsequente, também não se sabe. O que se sabe e que se ouviu também à mesa é que "a paixão é o que move as coisas."

Ainda que se levando a sério, os integrantes da mesa não dispensam oxigenar o cérebro com humor barato e rápido. Por isso repete-se aos ouvidos presentes a interrogação: "você tem falado com a Dani?"

Seguindo assim, os momentos compartilhados a mesa ficam registrados na lembrança e no caráter de seus integrantes. Momentos que serão com toda certeza retomados com nostalgia num futuro próximo.