26 julho, 2010

Um dia, uma infância

O ano é distante e a personagem que viveu esta história, pequena. É a segunda mais velha de quatro filhos, que adiante no tempo tornar-se-iam dez. Mora em um sítio daqueles próprios de histórias infantis, que tem criação de galinhas, patos, perus, cabras, ovelhas e bodes. As hortas e o pomar também dão gosto de descrever. Deles saem milho, feijão, batata, pinha, mandioca e caem cajus, mangas, laranjas e algumas pitombas.

A família apesar dos pesares, nos momentos em que esquece o desconforto e a ausência paterna, vive feliz. A mãe é figura dominante no dia da casa. Às tardes vai ao rio que corre perto do sitio para lavar as xícaras, panelas e banhar as crianças. A menina é de se encantar com as cores que preenchem o sitio, principalmente das flores pequenininhas que cobrem a copa, flores que só depois de adulta descobrirá se tratar de ipês amarelos. Uma de suas maiores alegrias em dias ensolarados é ajudar a mãe a carregar a cesta de milho verde. Seu irmão mais velho, mais magro e moreno é seu maior companheiro de pesca de pesca no rio, sempre às escondidas, enfeitando a infância.

Numa tarde de pouco sol a menina fica incumbida de cuidar das duas irmãs, a caçula de nove meses e a terceira dos quatro filhos. Como é linda a caçula, tem a pele apessegada, rechonchuda, com dobrinhas em todo o corpo, lindos cabelos negros e encaracolados. Dorme sorridente na rede listrada, pendurada por cima da cama dos pais. O quarto, pequeno e abafado, não tem guarda-roupas, ararás, prateleiras ou dessas coisas da cidade grande. A família arranjava-se com um varal sobre a rede, com as roupas e lençóis pendurados, como que guardados.

A menina está em outro cômodo da casa, entretida com ela mesma, até que escuta um grito ardido. Fica aflita, pensa logo na pequenina e corre para o quarto. Ao abrir a porta, sua outra irmã está em pé num tamborete de madeira contemplando curiosa o rosto da recém-nascida, um candeeiro de chama dançante, erguida acima da altura da cabeça... A menina não compreende o que está vendo, percebe labaredas de fogo, retalhos e fumaça misturadas com os agudos gritos do pequeno bebê. Corre ao encontro da mãe, lhe diz que há fogo na casa, que o bebê estava no quarto, que a irmã acendeu um candeeiro, que as roupas... Percebe a feição da mãe mudar. Das mãos firmes dela, caem a cesta de milho. Não sabe o que pensar...

O lindo bebê deixa a casa por um tempo. O tratamento dura algumas tristes e silenciosas semanas e a criança é mandada de volta para cuidados no sítio. A menina vê que sua irmãzinha não é mais a mesma. Seu corpinho já não é mais o mesmo. Após algumas dias de cuidados e reservas a pequenina deixa a casa, agora para sempre. Passa a predominar no sítio, uma sensação cortante, amarga. A menina passa a não mais contar com olhar confidente da mãe, menos ainda com o seu amor. Sofre desprezo e culpa indevida ao mesmo tempo, por um longo tempo. Mas cresce. Decide um dia procurar o seio materno para chorar o que não conseguiu no fatídico dia. É ouvida. Recupera a coragem para continuar crescendo e mais tarde compartilhar esta história - numa tarde também de pouco sol, sob lágrimas e infinitos outros detalhes - com os próprios filhos.

(Texto elaborado para fins acadêmicos. Adaptado para o blog com uma mescla de realidade e ficção, assim como fazemos quando relatamos algum episódio do passado em uma conversa.)

Um comentário:

Flávia Santos disse...

gostei. mais pq a gente vê o que é acadêmico e o que não!não dá pra misturar, rs