Caminhava com calma pela calçada limpa em paralelo ao trilho do trem, que seguia em extensa reta do outro lado da rodovia. Nas costas, uma mochila de tecido sintético e nos ouvidos um par de fones pretos que nunca deixavam de ecoar as melhores dos Paralamas, Titãs, Ultraje e Barão, ou seja, as melhores dos anos oitenta. Estava tranquilo, pois saíra cedo de casa e tinha pelo menos quinze minutos de folga para a chegada em seu posto de trabalho. Assobiava a cada passo dado, os pensamentos deslizando despreocupados sobre a noite anterior, o café da manhã recém ingerido e os planos para o restante do dia, ou boa parte dele. “Aonde quer que eu vá” começou a tocar. Com o indicador ele pressionou o botão com sinal de mais no pequeno aparelho e começou a cantarolar em voz alta. Os carros passavam ao seu lado a toda velocidade.
A caminhada já durava uns cinco minutos quando ele percebeu que a moça que seguia a sua frente atravessou a rua de maneira brusca, sem olhar os lados, como quem havia visto o diabo e precisasse escapar a todo custo. Quando viu aquilo a considerou louca e riu com desleixo. A displicência da moça rendeu além de um quase atropelamento, uma bela buzinada e um xingamento baixo e sujo do motorista.
Passou a chutar as pequenas pedras do chão enquanto cantarolava o refrão: “aonde quer que eu vá, levo você no olhar, aonde quer que eu vá...”. Viu uma folha de papel preto dobrada adiante, recolheu-a do chão e quando a desdobrou viu que era um flyer, de uma bela festa que aconteceria no próximo sábado. Pelo endereço, seria perto do centro da cidade, um pouco distante dali, mas com a presença de duas novas e boas bandas de rock que ele ouvira naquela semana. Dobrou o papel e o pôs com cuidado no bolso direito.
Aquela era a pior sensação que já sentira em sua vida. Quem eram aqueles caras? Quem eram eles para levar seu relógio sem mais nem menos. Eles não faziam idéia de que aquele relógio, simples que fosse, era um presente, um dos únicos presentes dados por seu pai. Seus pensamentos agora estavam turvos, as mãos tremiam e aquela sensação só poderia se chamar revolta. Queria correr, alcançá-los e pegar seu relógio de volta, falar bem alto que ele não era irmãozinho de ninguém. Mas estava em minoria, ele era minoria e menor, e não tinha nada em sua mochila que lhe desse vantagem na briga. Milan Kundera, Borges e um Dom Casmurro não eram boas armas para o plano físico e de urgência. Teve raiva daquilo, daquela situação toda, de ter chamado a moça de louca e ser ele mesmo o idiota desatento. Chegou ao prédio da empresa rubro. A recepcionista estranhou a face sisuda e questionou se estava tudo bem. Ignorou o sentido mais profundo da pergunta falando que havia corrido para chegar até ali e precisava ir rápido ao banheiro. Deixou a mochila na mesa de vidro e entrou pelo corredor.
6 comentários:
Ah, agora sim, mundo cão!! Brincadeira, provavelmente esse é o texto teu que mais gostei, não sei se por causa de uma certa familiaridade com o ocorrido ou por causa do tom mais irado e contestador. Raiva irmãzinho, raiva, não ha nada de errado em sentir raiva. Abs.
Nussa.. simplesmente incrível... já passei por uma situação parecida... e cheguei sentir o mesmo constrangimento por ter me deixado intimidar assim....
capacidade fantástica....
minha noiva me perguntou equanto assistiamos frida kahlo, pq os artistas tem tantos conflitos...
não sabia o que dizer na hora, mas fiquei pensando e cheguei a conclusão de que todos tem conflitos.. mas os artistas são os únicos com capacidade de botar pra fora....
Adorei o texto, como sempre! E a trilha sonora dele ("Aonde quer que eu Vá") é uma das minhas músicas favoritas. ;-)
Gostei;
quero começar a escrever contos assim, mas tá difícil.
exige mais tempo...
ai ai
continue
beijo
Mto bom sr. Amauri!
Gostei mto do texto...
Abraço e continue firme na caminhada!
Ps: Adicionei seu blog ao meu!
Puxa, um auto-retrato perfeito da tristeza que sentimos em perder algo importante. Da sensação de impotência, da raiva, da frustração.
Adorei esse texto também. Vc escreve horrores.
Um abraço,
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