01 novembro, 2008

Culpa

Os calmantes não faziam efeito, eram oito da noite e já estava sobre a cama há duas horas. Havia uma semana que não conseguia repousar em sono tranqüilo. Apagou a luz, esperando que o cansaço a recolhesse por entre a escuridão. Minutos se passaram o sono não veio e a aflição voltou novamente a inflamá-la. Ela já não reconhecia a estranha ausência de si mesma. Acendeu a luz, levantou-se num movimento impulsivo, trocou a camisola por uma camiseta cinza e uma calça jeans; penteou os cabelos com rapidez, passou batom nos lábios, pegou a chave do carro, seu celular, colocou-os na bolsa e saiu.

Antes possuía uma personalidade marcante, era uma mulher admirável, mas depois do fatídico dia, ficou vulnerável. Passou a recriminar-se em pensamentos obsessivos, pensamentos que perduravam as vinte horas em que ficava acordada no dia.

Dirigia pelas ruas e esquinas do bairro, sem destino certo. A noite estava abafada, abriu os vidros para poder respirar melhor. Procurou um cigarro no porta-luvas e não encontrou. Sentia dor de cabeça.

A culpa passou a ser o seu inferno. Não era arrependimento, não poderia mudar de atitude, não tinha recomeço, não poderia se redimir simplesmente, já estava feito. Era culpa e aquela sensação constante adquiriu contornos macabros em sua rotina. Aquilo passou a ferver seu sangue enquanto almoçava, passou a corroer seus ossos enquanto lia o editorial do jornal, torturar a sua carne enquanto tomava banho antes de dormir, amedrontar sua alma enquanto assistia a serie de TV, levando-a em obscuros dias de desespero. A paz havia se dissipado. Ela sentia culpa e não conseguiria suportar por mais tempo.

Estacionou perto de uma esquina sem movimento, ativou o alarme, saiu do carro fechando a porta com um movimento sutil e começou a caminhar. Os passos curtos e apressados pelas calçadas do bairro foram interrompidos pelo encontro que teve duas quadras adiante. Olhou a grande escadaria iluminada pela luz esbranquiçada do poste e teve repulsa, vergonha, mas também um dever inquestionável.

Começou a subir os degraus de concreto. Sentia a face quente, mas quando esfregou as mãos, suas palmas estavam suando, um suor gelado. No oitavo degrau apoiou-se no corrimão. Guardou a chave, que ainda estava em sua mão. Percebeu que um papel estava grudado na sola do sapato; uma propaganda em letras azuis começava no topo do papel com a sentença: “Seja feliz a partir de agora”, amassou o papel e deixou-o pelo chão. Continuou.

Ao chegar ao topo contemplou admirada a estrutura da porta antiga, trabalhada em madeira escura, com detalhes cor de ouro que percorriam toda a sua extensão. Fez o sinal da cruz com a mão direita, jogou o cabelo ondulado para trás dos ombros e adentrou.

Com passos calmos, olhava o chão e ouvia atenta o eco que eles emitiam ao seu redor. Percebeu um sussurro, ao olhar ao seu lado, viu uma senhora magra, vestindo uma manta com botões vermelhos, olheiras escuras, balbuciando uma prece triste com os olhos fechados e o terço de pérolas entre os dedos. Mais a frente reparou num casal ajoelhado sobre o suporte do banco comprido, ela com seu terço de bolinhas opacas, ele com as mãos unidas em frente ao rosto, as pálpebras apertadas, numa oração contrita.

Continuou a caminhar percebendo os rostos e rituais. Uma criança, sentada dois bancos a frente do casal, chamou sua atenção. Seus pequenos olhos estavam fixos no centro do altar. As duas esferas negras brilhavam sem piscar, hipnotizadas pelo alto da parede.

Lá no alto pendia um enorme crucifixo com um homem de barba comprida, cravado por pregos nos punhos e na base dos pés, a pele surrada, ensangüentado, com veias e tendões saltados em todo o corpo e no rosto uma expressão de contida agonia. Ao ver aquela figura, também não conseguiu descansar os olhos, seu coração pareceu pulsar com mais força. Passou a caminhar com decisão para aproximar-se da figura, mas logo a culpa lhe sobreveio. Como água, a culpa esfriou todo o calor de esperança, todo o rompante de convicção.

Olhou a sua esquerda e tomou o primeiro assento. Tentou descansar as mãos em cima dos joelhos, mas num ato involuntário cruzou os dedos. Sentiu sua respiração acelerar repentinamente, seus lábios passaram a tremer, e no seu peito passou a crescer um turbilhão de lembranças e sentimentos confusos que em poucos segundos fizeram correr em seu rosto, duas linhas de lágrimas doloridas. Ela engoliu o aperto que sentia na garganta. Olhou para a parede, para a cruz, para aquele homem desfigurado e numa voz quase inaudível rogou: “Perdão”.

3 comentários:

Imira disse...

Leitura fluida, me prendeu...

Joana disse...

Que agonia! - além do marcante trecho das 20h do dia que passa acordada...
Me lembrou das Horas Negras.
Está lá, no Castanha.

Flávia Santos disse...

o texto é bom, prende a gente.. só nao sei se gosto da coisa do final, na verdade é uma boa imagem, sempre é uma boa imagem.... gosto mais quando usada deslocadamente. Enfim.. voltarei mais vezes..bj