26 janeiro, 2009

Brinquedo Novo e o Pardal

Encaixou a tira na segunda ponta daquela armação de madeira áspera em forma de ipsilon. Ergueu na altura dos olhos e esticou o máximo que pôde com seus braços finos para certificar-se de que estava justo o bastante. Pegou um pedregulho na beirada da calçada e o posicionou dentro do retângulo de couro, no centro da tira de borracha. Apontou para o alto numa direção qualquer e disparou. A pequena pedra voou frouxa no ar e caiu do outro lado da rua. Seu novo brinquedo estava firme, agora ele tinha certeza e era isso o que mais importava.

Meio dia, o sol queimava a pino num céu sem nuvens. Uma volta no quarteirão e encontrou o terreno baldio, um espaço incomum naquele bairro apinhado de casas e morros, com um enorme paredão ao fundo, e que com o calor que fazia estava resumido à pura terra seca, poeirenta, num tom vermelho alaranjado.

Passou a treinar a pontaria e a velocidade dos tiros. Acertava o paredão com pedras arredondadas e cacos de tijolos. Fazia buracos cada vez mais no alto, com zunidos quase inaudíveis finalizados por um baque oco. Em um dos tiros, concentrou-se como se fosse um atirador de elite, cerrou o olho esquerdo, aplicou toda a força nos braços e disparou. A mão que segurava a tira de borracha estremeceu segundos antes do previsto, fazendo com que ele a soltasse e ela chicoteasse com força seu antebraço. Gritou um palavrão, largou o brinquedo sacudindo o braço com desespero.

Ficou com raiva de si mesmo. Pegou a armação do chão de terra, limpou-o com desdém na camisa velha e voltou aos disparos. Atirou três ou quatro pedras quando viu no alto do paredão de barro seco um pequeno pardal assobiando e movendo-se em pequeninos saltos de um lado para o outro. Ainda estava com raiva. Tentou ignorar o passarinho por alguns minutos, mirando outras pedras em outros cantos do terreno. Estava suando, as bochechas quentes, os cabelos e os pés vermelhos de terra. Olhou novamente o pardal e num ímpeto mirou seu pequeno corpo empenado. Novamente fechou o olho esquerdo, puxou com toda a força a tira de borracha contra o seu corpo, sentiu uma gota fina de suor quente escorrer pelo canto do seu olho e descer pelo seu pescoço. Apertou a boca e soltou o tiro com um grito de ódio. Viu o passarinho cair movimentando-se freneticamente, numa tentativa de voo. A queda era alta e quando chegou ao chão a pequena ave não expressou mais vida. Subiu uma pequena nuvem de poeira vermelha ao seu redor. O menino não conseguiu se mexer, ficou parado olhando de longe aquele pequeno bolo de penas, agora sujo. Sentiu um aperto esquisito acima do estomago. Pegou o brinquedo com as duas mãos e novamente num ímpeto, quebrou a armação de madeira em duas partes e jogou longe no fundo do terreno, não percebeu que uma farpa espetara seu dedo médio. Limpou o suor do rosto e correu agoniado para casa. Não queria mais brincar por um bom tempo.

25 janeiro, 2009

Objetos Perdidos e a Moeda de Bronze*

No portão da Escola Amarela Tiná, Juju e Biazinha esperavam Caco e Cadu que sempre esqueciam alguma coisa debaixo da carteira, dessa vez Caco esquecera seu casaco e Cadu seu guarda-chuva. 

Todos os dias eram parecidos, os cinco voltavam juntos para suas casas. Tiná era a que chegava primeiro na sua, enquanto Cadu era o que geralmente chegava por último e sozinho, exceto quando a turma levava suas economias a fim de tomar um sorvete na hora da saída. Como a cidade era pequena, tudo era bem perto. A padaria ao lado do açougue, a quitanda em frente ao posto (sempre vazio) de gasolina, a pizzaria à esquerda do salão de beleza... Cadu morava perto da sorveteria do seu Nestor que ficava a algumas quadras da escola, depois da praça.

Naquele dia todos estavam preparados para tomar o Delícia de Creme, especialidade do seu Nestor, e acompanhariam Cadu por todo o percurso até perto de sua casa. A diversão era garantida. Riam e cantavam, dando passos largos por entre as calçadas vermelhas do bairro... Mas de repente todos perceberam que Cadu não estava muito animado, chutava os pedregulhos no chão com as mãos no bolso, meio cabisbaixo, sempre dando um sorriso de canto-de-boca quando falavam seu nome. Tiná já desconfiava do que tinha acontecido com o amigo. Com certeza, e como sempre, Cadu gastara suas economias e não tinha um tostão para o sorvetão do dia. Com todo mundo imitando seus passos feito siga-o-mestre, sem ele perceber, foi com um tapão na cabeça de cabelos cacheados, que Tiná fez o garoto ficar novamente risonho. “Relaxa Carlinhos Eduardo! A gente divide as moedas com você, acho que vai dar até pra tomar dois Delícias cada um!”

Quando chegavam perto da esquina que antecedia a sorveteria, viram um senhor baixinho e careca de roupas pretas entrando pela rua à esquerda que, por incrível que pareça, nenhum deles conhecia. O que chamou a atenção de Tiná e sua turma é que do bolso da calça meio amassada caíram vários objetos, parecidos com moedas, que o homem deixou pra trás sem se importar. 

Rapidamente os cinco correram, atravessaram a rua, para avisar o homem de seus objetos esquecidos. Quando chegaram em frente ao local e olharam pra a rua em que o homem de preto entrou não viram mais ninguém. Tiná agachou, e com as mãos fazendo o formato de concha, pegou as pequenas moedas juntamente com um pedaço de papel amarelado todo dobrado e rabiscado. Quis ir atrás daquele homem pela rua esquerda, mas a turma estava ansiosa para o Delícia de Creme. Então Tiná abriu o bolso menor da mochila de lã, jogou as moedas e o papel, combinando em voz alta que no dia seguinte todos voltariam ao mesmo local para devolvê-los ao senhor desconhecido.

Seu Nestor - um velho de barriga grande e bigodes brancos - já aguardava as crianças na frente da sorveteria com a maior satisfação. Sempre com balas de mel nos bolsos do avental laranja, recepcionava cada um com um punhado, acomodando-os nas poltronas fofas e coloridas da sorveteria.

“Aquele de sempre pra gente Seu Nestor! Com bastante cobertura!” – disse Biazinha que mal conseguia apoiar os braços na mesa. “Pode deixar comigo galerinha. Hoje vai sair no capricho!”

Com a boca toda lambuzada de cobertura de morango Caco fez uma pergunta que todos estavam pensando em silêncio: “Quem era aquele homem que a gente nunca viu por aqui antes?”. “E com aquela capa roupa toda preta nesse nesse sol?! Credo!” – disse Juju, antes de passar a colher por cima da taça transbordante.

Realmente aquele senhor careca era um estranho para a turma, que no intuito de descobrir alguma coisa, perguntaram ao Seu Nestor se ele o conhecia. “Não, não crianças... Não vi nenhum senhor de preto por aqui hoje.” Aquilo realmente era muito esquisito.

Estavam terminando o saboroso sorvete, quando Caco deu um pulo da poltrona. “Caramba galera! Esqueci que tinha de comprar ovos para o bolo. Minha mãe falou para eu ir direto para casa. Hoje é aniversário do meu pai e à noite vai à família toda lá pra casa! Tchau turma!” – deixou o dinheiro na mesa e sumiu da sorveteria. Já eram duas da tarde e cada um tinha de voltar para casa. Após agradecer Seu Nestor e deixar a montanha de moedas ao lado das taças, saíram os quatro no mesmo sentido. “Amanhã depois da aula aqui neste mesmo lugar hein?! Temos que devolver essas coisas ao dono.” – falou Tiná sacudindo o bolso da mochila onde estavam guardados os objetos. Após combinarem a nova missão, cada um tomou uma direção diferente. E dessa vez a última a chegar em casa sozinha foi Tiná.

                             *          *          * 

“Bá-bá-bá-buuuuuuu” – foi esse som a primeira coisa que Tiná ouviu após abrir a porta. Pepê balançava as perninhas deitado no berço que dona Alice colocara no meio da sala, enquanto fazia a lista do supermercado sentada em frente à TV. Após mostrar a língua para o bebê que a recebia com o mesmo som de “Bá-bá-bá-buuuuuu”, Tiná sentou ao lado de dona Alice para saber o que fazia. “Oi querida! Já estava preocupada com você! A mãe do Antônio Carlos ligou aqui perguntando se ele estava com você.” – falou dona Alice sem tirar os olhos do papel que já não tinha espaço para escrever. “Ah é, mamãe! Ele acabou esquecendo que tinha que ir logo para casa. Nós fomos depois da aula ali na sorveteria e ele lembrou lá... Mas já deve estar na casa dele.” – respondeu Tiná enquanto tirava a mochila das costas e descalçava os pés. “Já disse à senhorita para me avisar quando sair depois da escola... E agora pode ir tomar seu banho, que daqui a pouco o papai vai chegar e vamos fazer compras.” “Ah mamãe! Posso ficar na casa da Juju? Vocês demoram até comprar tudo e nunca me deixam trazer os biscoitos” - pedia Tiná já esparramada em frente à TV. “Tudo bem, mas não pense que vai escapar do seu banho. Vamos, vamos rápido que eu vou ligar para a mãe da Júlia e depois te deixo na casa dela”. – disse dona Alice, fechando a tampa da caneta e levantando-se em direção ao telefone.         

                           *          *          *

Agora quem ficava no centro do banco de trás do carro era Pepê. Outro ponto a menos para Tiná, que entrava no carro com o maior bico. “Ele vai aqui de novo mamãe?!” “Sem reclamar querida, a cadeirinha só encaixa aí.” – respondia dona Alice sempre serena.

Umas das coisas que Tiná não deixava de levar para onde quer que fosse era sua mochila de lã. Dona Alice que a havia costurado quando estava grávida, e agora também estava quase terminando a de Pepê, que começara a tecer numa lã azul depois que o filho nasceu. Tiná deixou o caderno de disciplina no seu quarto e carregou a mochila até o banco de trás do carro.  Colocou-a em seu colo, e já não agüentava a curiosidade de poder olhar melhor os objetos que encontrou. Mas se manteve firme até chegar à casa de Juju.

Com um beijo estalado em seu Plínio e dona Alice e um aceno de mão para Pepê, Tiná pulou do carro e foi apressada até a porta da casa, onde dona Márcia aguardava sorridente. “Às oito nós estamos de volta hein mocinha?! Obrigada viu Márcia; até mais tarde!” – falou dona Alice em voz alta para as duas que já entravam na casa sem nem ouvir direito.

Tiná já sabia o caminho do quarto de Juju. Com a mochila nas costas subiu as escadas, e correndo chegou até a porta enfeitada com lantejoulas. “Abre aqui Juju!” – falava ansiosa. Mal a amiga abriu a porta e Tiná se jogou no tapete, abrindo o bolso da mochila. Juju já tinha esquecido dos objetos do senhor careca, e quando os viu nas mãos de Tiná seus olhos brilharam. “Ah Tiná é tudo moeda comum... Não dá nem pra comprar um picolé com elas... E ainda com essas pedras... Esse papel velho... Todo amarelado...” – falava a menina enquanto Tina manuseava com imenso cuidado. “É verdade Jú é tudo co...” – começou Tiná antes de ficar paralisada de joelhos olhando para o que tinha em suas mãos.

Tiná nunca havia visto algo parecido com o que via agora. Entre os objetos que recolheu na esquina da sorveteria do seu Nestor, uma moeda de metal opaco chamava sua atenção. Era uma moeda bonita, bem mais que os centavos que estava acostumada a depositar em seu cofrinho. Com desenhos minúsculos, que a cobriam quase que por inteiro, tinha o tamanho igual ao dos biscoitos de chocolate que ela tanto gostava. Logo que a pegou nas mãos, Tiná viu que era feita de bronze, pois o tom da cor e a textura se assemelhavam as jóias que sua avó deixara para dona Alice.

Aquele era um momento especial. O tempo parecia ter parado dentro do quarto espaçoso. Por dois minutos – tempo que Tiná levou examinando quase que acariciando a moeda – elas não conseguiram pronunciar uma palavra se quer. Os olhos brilhavam juntamente com o reflexo da moeda, que apesar do metal opaco, tinha um reflexo reluzente quando posicionado contra a luz.

Por que uma pessoa andaria por aí com uma moeda daquelas? E se não fosse apenas uma moeda comum? Quem era aquele senhor careca de preto que eles nunca haviam visto na redondeza? Muitas perguntas surgiram tanto na cabeça de Tiná quanto na cabeça de Juju, mas o silêncio cobria todos os pensamentos.

“Toc, toc, toc!” O barulho da porta interrompeu todo aquele encanto. Era dona Márcia que convidava as meninas para jantar. Num susto repentino, Tiná jogou a moeda de bronze no fundo da mochila de lã. Rapidamente as meninas levantaram-se do tapete, e como se tivessem descoberto um segredo que não pudesse ser contado a ninguém, impostaram a voz e em uníssono responderam: “Já vamos!” Aguardaram mais um segundo em silencio até ouvir os passos de dona Márcia descerem as escadas lentamente. Respiraram fundo e agachando-se novamente, juntaram à grande moeda na mochila, os outros objetos que mal puderam observar. Foi necessário apenas fechar a mochila para que a curiosidade de Tiná aumentasse quanto ao restante dos objetos, principalmente o papel dobrado, que dessa vez parecia maior e mais amarelado do que quando caiu na esquina.


* Segundo capítulo de um futuro livro infantil que pretensamente comecei (somente isso) a escrever em 2005.

21 janeiro, 2009

Escreve

Escreve para mim uma carta

Pense nos versos, repense as vírgulas e escreve.

Escreve para mim um soneto

Em papel de pão, que seja

Faça rimas a combinar com meus pensamentos rasos.

Escreve para mim um segredo

Diga no rodapé o que sente e não trocaria

Por ouro nenhum deste ou de outro mundo.

Escreve para mim uma receita

Um saboroso quitute, as medidas e porções

Que amenizarão o azedume da boca.

Escreve para mim um cartão de despedida

Ponha a data, mas seja breve, sutil e cortante

Como todo adeus tem de ser.

Escreve para mim uma recomendação

Coloque os horários, anote os dias e dite as regras

Para que finalmente eu siga alguma instrução.

Escreve para mim um pedido

Comece com aspas, se faça de ingênuo e necessitado

Que te atenderei

Escreve para mim um bilhete

Primeiro seu nome em letra maiúscula

Para que me lembre de você.

 

Não fique acanhado

Pegue papel e lápis

Se preferir com uma caneta escreva na palma da mão

Só não esqueça, antes de dormir

Escreve.


13 janeiro, 2009

Velhos Celebrantes

Entrei no trem, como de costume, um pouco atrasado. Fone no ouvido, pensamentos contidos e olhar perdido no ar. Recostei-me na barra de ferro à direita e mais pelo calor que pela visão percebi que o vagão estava cheio. O rock soava alto e com o dedo indicador imitava baquetas na perna. Um ruído agudo, a porta do trem se fechou.

Meus olhos que passeavam pelo chão opaco do vagão se depararam com um par de sandálias de dedo gastas pelo tempo, com tiras de couro bem finas, acomodando pés também visivelmente gastos pelo tempo. Os pés se mexiam freneticamente como que ardessem suas solas. Subi o olhar curioso pelo fato atípico naquele trem.

Era uma mulher franzina, o rosto com traços marcados, aparentava avançada idade, na boca uma arcada dentária de aspecto artificial, uma pele enrugada, adornada por coloridas bijuterias. Os cabelos eram brancos e ralos, cobriam com palidez todo o couro cabeludo, terminando em um minguado rabo de cavalo. Uma de suas mãos salpicadas de pintas amarronzadas segurava o apoio de ferro e a outra, na altura do pescoço, gesticulava efusivamente.

Reparei em seus lábios, cobertos por uma cor rosa, eles se entreabriam com ritmo e de forma acelerada. Tirei o fone para ouvir suas palavras e notei que ela se dirigia a um grupo de três amigos tão vividos e gastos pelo tempo quanto ela. Poemas rimados, belas cantigas, letras de sambas antigos, epopéias em cordel dividiam espaço com sonoras gargalhadas e o que pensei ser um monólogo na verdade era um diálogo.

Aquela cena me fascinou . Tudo aquilo se assemelhava a uma celebração. Mas do que? Ou para quem? Uma celebração à vida,  precária e sofrida visto as condições de seus celebrantes? Uma celebração à velhice, um orgulho absurdo num mundo que prega diariamente a perpetuação da juventude sob qualquer preço? Uma celebração à amizade diante da fragmentação agressiva das relações nestes anos dois mil? Aqueles declarações festivas, aqueles risos descompromissados, aqueles sambas cadenciados em vozes roucas e semblantes gastos pelo tempo, que chamavam atenção ora alegrando uns, ora irritando outros, celebravam o que?

Fiquei incomodado. Era para estarem lamentando, mas não, ou não. Um ruído agudo, a porta do trem se abriu.

04 janeiro, 2009

Quintal e o Menino

Largou as bolinhas de gude no chão quando ouviu o rangido do portão se abrindo. Correu pelo quintal gramado até chegar aos pés da mãe, que com suor deslizando pela face carregava sacolas abarrotadas. Pegou uma das sacolas, disfarçando a careta de peso com um sorriso forçado. A mãe soltou o restante das sacolas para poder dar descanso aos dedos. Precipitado, correu com a sacola em direção a porta de casa sem ver as bolinhas de vidro espalhadas pelo chão. O tombo foi grande. As batatas e berinjelas espalharam-se por toda parte. Sentou com cara de choro, olhou para o joelho que começava a se avermelhar com sangue aguado. A mãe quis ficar brava, mas não conseguiu, deixou-o por um instante sentado decidindo se chorava ou não, recolheu os legumes empoeirados e levou as sacolas até a mesa.

Logo esqueceu o arranhão, voltou a riscar com telha o chão de barro. Era ali que inventava seus mundos, enterrava seus botões, papéis e pedras coloridas em caixas amarradas com barbante. Comia goiaba verde do pé. Fazia a dança da chuva enquanto ela caia. Dava voltas pelo corredor que cercava a casa, contava o tempo, batia recordes, ganhava premio no pódio. Ajudava as tanajuras no carregamento das sementes até os buracos das minúsculas famílias. Gritava “terra à vista!” ou “preso em nome da lei!”, dependendo da ocasião, numa companhia solitária de seu amigo imaginário. Era com ele que tinha conversas sérias, era para ele que mostrava os mapas e rotas das aventuras vindouras. Com ele desabafava, reclamava das lições de casa e da obrigação das verduras no prato. Era a ele que dava bom dia, vamos logo, boa tarde, não enche o saco e boa noite!

Girava o carrinho de madeira em frente à janela da sala quando sentiu passar pelas suas narinas um aroma que reconhecia como ninguém. Aquilo era purê cozinhando na panela e logo que percebeu seu estomago deu um sinal.

Correu para a porta tirando a sandálias dos pés para não sujar o chão encerado. Enxugou o suor do rosto com o braço, deu um sorriso para a mãe e correu em direção ao banheiro. Aprendeu que a hora do almoço era também hora do banho, uma sequência que decorara com muita bronca. Funcionava como regra: banho, almoço, troca de roupa e escola. Antigamente realizava a sequência de outra maneira: almoço, banho e escola, mas começou a passar mal de indigestão durante o banho. Quando começou a lambuzar as roupas com a nova sequência, sua mãe teve de separar o banho da troca de roupa.

Quando a mãe percebeu a empolgação dele decidiu esperar para ver o milagre. Cinco minutos depois ele já estava sentado sob a mesa, cabelos penteados para o lado, guardanapo no pescoço, mochila no braço da cadeira e os olhos saltados sobre a panela. A mãe fez o seu prato, sorriu vagarosamente um sorriso de satisfação e incredulidade. Esse menino estava mesmo no mundo da lua, mal sabia ele que não era dia de escola. No sábado o banho podia ficar pra mais tarde.