25 março, 2009

Frederico

Foto por Thiago Beleza

O pequeno posto de saúde do bairro estava movimentado naquela manhã de sábado. Dona Eleonora chegou à recepção com Frederico e estava ansiosa com a nova experiência, o primeiro filho até então, só havia tomado as tranquilas gotinhas. Frederico, com a mão direita presa à mãe, estava como de costume aéreo, girando com a outra mão o pequeno Power Ranger articulado. Imitava sons de explosão e golpes mortais durante todo o tempo, o que deixava dona Eleonora levemente irritada, trazendo-o de minuto em minuto junto a seu corpo com discretos puxões tensos.

Frederico não conseguiu ver o rosto da moça que disse bom dia a sua mãe atrás do balcão, sabia que era moça, pois a voz assemelhava-se a de sua tia Ester: encorpada, delicada e entusiasmada. Antes de abrir a bolsa para pegar alguns documentos, dona Eleonora agachou-se na altura do filho, olhou fundo em seus olhos acastanhados e sentenciou: “Comporte-se!”. O sorriso de canto de boca do pequeno parecia negar o cumprimento da ordem. Enquanto os papéis eram conferidos sob uma conversa de amenidades: o tempo quente, a semana corrida, a chegada da páscoa, Frederico voltou ao pequeno mundo do herói naquela ante-sala morna. No “terceiro giro mortal que derrotava o inimigo astuto do planeta Terra”, Frederico parou em frente ao mural na parede curioso com a figura estampada. Era uma foto de uma bonita barriga, sendo enlaçada por duas mãos sem revelar a quem pertenciam: para ele parecia ser de um homem, devido aos pelos nos braços como os de seu pai, e de uma mulher, pela pulseira de um rosa bem clarinho. Ao ver diversas letras sem significado, perguntou à mãe cutucando seu braço: “Que isso?”. Dona Eleonora, pensou por alguns instantes, queria ser simples e esclarecedora na resposta, mas não encontrava a linguagem certa para isso. Uma gestante? Uma mamãe com um bebê ainda na barriga? Um casal esperando um filho?! Nenhuma dessas alternativas parecia poder sanar a dúvida do pequeno Frederico. Olhando o boneco na mão do filho, teve um estalo seguido de uma vergonha absurda, coisa de mãe inexperiente: “É uma nave espacial querido, devem estar lançando um brinquedo novo.” A moça da recepção abafou com as mãos uma risada alta, que fez dona Eleonora corar. Frederico com cara de espanto, também riu sem saber direito a razão.

Mãe e filho seguiram pelo estreito corredor até chegar numa sala movimentada. Um cheiro nauseante pairava no ambiente, uma mistura de álcool, produtos de limpeza e mofo. Mulheres de branco circulavam pelo corredor, nas paredes outros cartazes de alerta sobre doenças, tratamentos e datas especiais. Enquanto guardava o restante dos papéis na bolsa, dona Eleonora acomodou o filho em seu colo e deu a ele um cartão de papel verde com marca de carimbos. Frederico ajudou a mãe meio desatento, entretido com o desenho animado que passava na televisão do  móvel a sua frente.

Em pouco tempo Frederico já não prestava atenção nos personagens e menos ainda no seu pequeno boneco. Estava com calor, queria ir embora. A sala enchera rapidamente e ele não sabia o que pensar sobre os constantes choros e gemidos vindos de toda parte. “Vamos pra casa mamãe?” – pediu tristonho, apertando a sua cintura.

“Senhora Eleonora Vila Verde!” – a voz vinha da sala ao lado. “Vamos querido, somos nós” – falou a mãe com um olhar nervoso e um sorriso forçado. Frederico pressentiu algo estranho e começou a chorar: “Não quero mamãe, não quero ir...” Dona Eleonora falou baixinho em seus ouvidos que tinha preparado uma grande surpresa para quando voltassem para casa, mas antes era preciso conversar com o moço de branco da sala ao lado. Após enxugar as lágrimas do filho, ela o levou abraçada no colo até a saleta abafada, o coração apertado. “Fala bom dia para o moço de branco querido, entrega a folhinha pra ele, entrega...”. Frederico, com os olhos avermelhados e o nariz úmido, esticou a mão para o moço de branco sem fazer questão de atender aos pedidos da mãe. O médico, ou estudante de medicina, era um rapaz bem jovem e simpático, deu ao menino três balas coloridas e o fez rir com algumas cócegas debaixo do braço.

Depois que todos estavam mais aliviados na sala, o doutor pediu que dona Eleonora se sentasse na cama acolchoada do canto da sala e preparasse o menino para a dose. “Tudo bem” – respondeu a mãe com uma respiração cortada.

Enquanto ela se acomodava e tranquilizava seu pequeno, o doutor preenchia uma ficha e carimbava o cartão. Pegou a seringa, a agulha e a pequena ampola. Apontou contra a luz e sugou todo o liquido do vidrinho. Abaixou a seringa na altura na barriga e testou a saída da agulha, espirrando algumas gotas amareladas.

Dona Eleonora nunca suportou ver o filho chorar, fazia de tudo para vê-lo satisfeito. Entregava-lhe a sobremesa antes da refeição, comprava os brinquedos que o deixavam impressionado a cada semana, deixava-o assistir os dvds do Barney até mais tarde, permitia que ficasse sem comer os legumes do prato e até dormir sem tomar banho em alguns dias na semana. Era sempre uma batalha que ela perdia. E neste dia sentia que estava trapaceando com o filho, sairia vitoriosa da batalha inconsciente, mas para ela era uma vitória covarde, iria fazer seu filho chorar sem  dar a ele uma chance de escolha.

Frederico, de pé no colo da mãe, olhava pela janela as pombas que pousavam no beiral do lado de fora, os pequenos dedos apontavam várias delas e ele alegre, ensaiava uma contagem: “Uma, duas, quatro, três...” Enquanto o médico se aproximava, Dona Eleonora quis impedi-lo por um instante, não queria maltratar seu pequeno. Ao perceber a aflição da mãe, o doutor disse que ficasse calma, não aconteceria nada de mal ao seu filho, pelo contrário era para a saúde dele. Assim que o doutor abaixou-se, Dona Eleonora apontou para árvore alta do outro lado da rua: “Olha lá querido, outros passarinhos.” Quando disse isso, viu o rosto do filho se contorcer, uma uma face desfiguarada surgiu, uma careta horrenda de choro seguida de um grito dolorido. Ela o abraçou forte contra o peito, tentou abafar seu choro com as mãos e o balançou no colo com desespero. O médico que não devia ter filhos acariciou o pequeno Frederico um pouco triste, era seu ofício e o menino soluçava. “Quer dar um pouco de água à ele” – perguntou meio sem ação. “Acho que não precisa, ele já está se acalmando” – respondeu dona Eleonora. O menino não parava de chorar e ao voltar a sua mesa para pegar o papel do pequeno Frederico, o doutor também viu algumas lágrimas deslizarem dos olhos da mãe.

Ela agradeceu e se levantou para voltar pra casa, o coração batendo acelerado, o peito do menino encostado ao seu, quando Frederico choramingou: “Era injeção mamãe?” Dona Eleonora abraçou forte o filho e não respondeu.

11 março, 2009

Ventilador Empoeirado

Foto por Thiago Beleza

Às vezes somos como ventilador empoeirado. É, um ventilador empoeirado. Nesses dias de intenso calor parei por alguns instantes, na ânsia de encontrar significado para algumas de minhas preocupações e observei o velho ventilador de casa. Robusto, potente e antigo, nos tempos de calor ele fica estrategicamente localizado no canto da sala. Quando já não suportamos o ambiente, suas hélices giram na maior velocidade possível, produzindo um quase irritante zumbido agudo. O movimento de cento e oitenta graus é manso e incessante. Essa frequência, claramente altera a temperatura do ambiente; o ar parado, sufocante e caótico passa a se movimentar numa dança veloz pelos quatro cantos, fazendo a respiração fluir com facilidade e o suor secar no corpo. Mas, mesmo afastando a monotonia do tempo, mesmo lançando as células mortes acumuladas nas superfícies pelos ares, o velho e decente ventilador fica empoeirado. Dia após dia debaixo ou dentro dos exagerados graus do verão, no canto da sala, no alto de sua eficiência como ventilador, ele faz sempre os mesmos movimentos e permanece em si, empoeirado. Não pára, não acelera, não cai, não ventila a si próprio, não queima... Permanece ali, em cento em oitenta graus durante todo o dia.

Discutimos sobre sonhos, pensamos sobre sonhos, sonhamos sobre sonhos e corremos atrás deles. Queremos movimentar esse ar sufocante da nossa realidade e alcançar ares de alivio, então falamos, discutimos, planejamos, nos preparamos... Mas uma hora nos damos conta de que estamos estrategicamente parados no canto da sala; abençoando o cotidiano alheio com nossa competência, eficiência e omissão. Nossos ombros são as melhores escoras para o sofrimento de terceiros. Exercemos toda a nossa potência em dias de conflito, mas nossas quatro hélices permanecem encardidas, nossa base está acinzentada, tal a grossa camada de pó... Parece que estamos na contramão. Mudamos outras realidades, não a nossa. Toda decisão de mudança parece uma opção de derrota. Preferimos ser velhos e confortáveis em nossa tarefa de viver. E esses mesmos sonhos pelos quais nossos coraçoes e mente palpitam, demoram a se realizar. Parece que estamos seguindo na vida sem efeito. E não há quem nos desligue, ou nos dê um curto-circuito, ou mesmo se posicione do outro lado da sala para que possamos respirar ares de mudança.